Enviado por: Bruno Borges Porto
Autor do texto: Cláudio Ricardo Silva Lima Júnior
1. Introdução
O sistema jurídico romano-germânico, que, em oposição ao fenômeno tipicamente inglês da common law, é denominado pelos britânicos de civil law, formou-se na Europa continental, a partir do século XIII d.C., e, ainda hoje, conserva essa região como seu principal centro (DAVID, 1972, p. 57). Decorre dos princípios e regras dos antigos direitos romano e canônico, os quais, associados aos costumes dos povos germânicos que definitivamente ocuparam a Europa central após o século V d.C., formaram um conjunto elaborado de normas jurídicas que estão na base dos ordenamentos dos países direta ou indiretamente influenciados pelas nações do continente europeu (LIMA, 2013, p. 79-82). Neste estudo, examinam-se as origens e fundamentos do regime de civil law.
2. Construção histórica
A história do sistema jurídico romanista se desenvolve em três períodos: um, que se inicia com o renascimento dos estudos de direito romano nas universidades, por volta dos séculos XII e XIII d. C.; outro, no qual, durante cerca de cinco séculos é o modelo dominado pela doutrina, que chega a exercer grande influência no conteúdo de diferentes direitos nacionais; e um último, iniciado no século XVIII com a Escola do Direito Natural, e que persiste até os dias atuais, em que há o predomínio da legislação como fonte do direito (DAVID, 1972, p. 57).
O Império Romano, fundado por Augusto em 27 a.C., conheceu uma civilização brilhante, cujo gênio legou ao mundo um sistema jurídico nunca antes visto. As invasões de diversos povos bárbaros, em especial os germanos, contudo, levaram à queda do Império Romano do Ocidente no século V d.C. (MELLO; COSTA, 1995, p. 172). [1] Em decorrência, as populações romanizadas e os bárbaros passaram a viver lado a lado, seguindo, uns e outros, as suas próprias leis. Gradualmente, foi-se verificando a miscigenação entre os diversos grupos étnicos e, com a feudalidade crescente, voltaram a vigorar os costumes locais, com perda do valor primitivo conferido à lei (DAVID, 1972, p. 58).
Esse movimento de abstração normativa conduziu a um declínio do direito escrito, que, por sua vez, levou à decadência da própria ideia de Direito durante a Alta Idade Média (séculos V a ao XI d.C.). Com efeito, muitos dos costumes vigentes no auge do período medieval contavam com a utilização de ordálios ou “juízos de Deus” (judicium Dei) quais critérios para a solução de litígios. Tratava-se de uma espécie de prova judiciária usada para determinar a culpa ou a inocência do acusado por meio da participação de elementos da natureza, cujo resultado era interpretado como um juízo divino. [2]
Tal apelo a um processo místico, de resultado aleatório e potencialmente injusto, associado à inexistência de uma autoridade que garantisse, por meio da força, nas demandas de interesse individual, a execução dos julgados em favor do vencedor, contribuíram para o descrédito da ideia de Direito, ocasionando a resolução de conflitos pela lei do mais forte, pela decisão arbitrária de um chefe ou pelo estímulo à fraternidade e à caridade, estes últimos, ideais profundamente desenvolvidos pela teologia cristã. É o que esclarece René David:
Para que serve conhecer e precisar as regras do direito quando o sucesso duma parte depende de meios tais como o juízo de Deus, o juramento das partes ou dos “conjuradores” (compurgação) ou a prova dos “ordálios”? Para que serve obter um julgamento se nenhuma autoridade, dispondo de força, está obrigada ou preparada para pôr esta força à disposição do vencedor? Nas trevas da Alta Idade Média, a sociedade voltou a um estado mais primitivo. Pode existir ainda um direito: a existência de instituições criadas para afirmar o direito (as rachimburgs francas, as laghman escandinavas, as eôsagari islandesas, as brehons irlandesas, as withan anglo-saxônicas) e até mesmo o simples fato da redação de leis bárbaras tende a convencer-nos disso. Mas o reinado do direito cessou. Entre particulares como entre grupos sociais os litígios são resolvidos pela lei do mais forte ou pela autoridade arbitrária de um chefe. Mais importante que o direito é sem dúvida a arbitragem, que visa menos a conceder a cada um o que lhe pertence, segundo a justiça e como o direito exige, do que manter a solidariedade do grupo, assegurar a coexistência pacífica entre grupos rivais e fazer reinar a paz. O próprio ideal de uma sociedade fundada no direito é abandonado pela maior parte: uma sociedade cristã não deverá antes procurar fundar-se sobre as ideias de fraternidade e de caridade? S. Paulo, na sua primeira epístola aos Coríntios, exalta a caridade em vez da justiça e recomenda aos fiéis que se submetam antes à arbitragem dos seus pastores ou dos seus irmãos em vez de recorrerem aos tribunais. Santo Agostinho defende a mesma tese. No século XVI, também um adágio, na Alemanha, diz Juristem, böse Christen (Juristas, maus cristãos); se se aplica de preferência aos romanistas, o adágio vale para todos os juristas; o próprio direito é coisa má. (DAVID, 1972, p. 59-60)
O afastamento geral da ideia de Direito não coincide, contudo, com um período de total inexistência de legislação. No Império Romano do Oriente, e, em certa medida, na Itália, Justiniano publicou, de 529 a 534 d. C. um conjunto de obras que, no século XVI, veio a ser denominado de Corpus Iuris Civilis (o Código, o Digesto ou Pandectas, as Novelas e as Institutas). [3] Os dois primeiros são compilações consolidadas e sistematizadas, respectivamente, das leis e doutrinas romanas, do reinado de Adriano ao de Justiniano; as Novelas registram as normas editadas por Justiniano e seus sucessores diretos, ao passo que as Institutas representam um manual de estudos, contendo os princípios do Direito extraídos do Código e do Digesto, elaborado por uma comissão de juristas nomeada pelo Imperador, formada por Triboniano, Doroteu e Teófilo, professores das escolas de Constantinopla e de Bento, nos moldes das Institutas de Gaio, do século II d. C. (MELLO; COSTA, 1995, p. 202). No território do antigo Império Romano do Ocidente, a partir do século VI, foram redigidas leis bárbaras para a maioria das tribos germânicas, reunidas, em 1861, na coleção das Monumenta Germaniae Historica. Na França e na península Ibérica, a Lex Romana Wisigothorum ou Breviário de Alarico, promulgada em 506 d.C. – compilação de leis romanas em vigor no reino visigodo de Tolosa, durante o reinado de Alarico II (487-507 d.C.) –, ilustra, igualmente a utilização do direito escrito pelos povos bárbaros que ocuparam o continente europeu (DAVID, 1972, p. 58).
Por conseguinte, não obstante o valor conferido ao costume e o desapego à noção de Direito na Europa Ocidental dos séculos V ao XI, fruto da descentralização política inerente à estrutura feudal, associada ao aumento da influência dos ideais de fraternidade e caridade da Igreja, sobreviveu um corpo normativo escrito, produzido no limiar da Idade Média, que serviria de base à reformulação de uma teoria jurídica no alvorecer da Idade Moderna. O renascimento comercial e urbano iniciado no século XI e, de resto, o inteiro fenômeno do renascimento cultural na Europa, que atingiu seu apogeu dos séculos XIV ao XVI, marcando o fim da Idade Média e o início da Idade Moderna, repercutiu no plano jurídico com a retomada de consciência da necessidade do direito.
Com o ressurgimento das cidades e do comércio, a sociedade constata novamente a imprescindibilidade do direito, visto como o único instituto capaz de assegurar a ordem e a segurança que permitem o progresso. Abandona-se o ideal de uma sociedade cristã fundada na caridade e a própria Igreja distingue a sociedade religiosa dos fiéis da sociedade laica, elaborando um direito privado canônico. Estabelece-se a distinção entre religião e ordem civil (regras morais e regras de direito) e se confere ao sistema jurídico uma função própria e autônoma. O retorno à noção romana de que a sociedade deve ser regida pelo direito é, pois, no século XII, uma revolução: filósofos e juristas passam a exigir que as relações sociais se baseiem no direito e que se encerre o regime de anarquia e de arbítrio que reina há séculos na Europa continental (DAVID, 1972, p. 60).
A formação do sistema de direito romano-germânico, pois, está ligada ao renascimento cultural que se produz nos séculos XII e XIII no Ocidente europeu, que preparou o caminho para o amplo movimento de retorno aos valores da antiguidade clássica operado nos séculos XIV a XVI. O principal meio pelo qual as novas ideias se espalharam, favorecendo a retomada do valor conferido ao direito romano, foi constituído pelos novos focos de cultura criados na Europa, em especial as universidades, dentre as quais a primeira e mais ilustre foi a Universidade de Bolonha, na Itália (DAVID, 1972, p. 61).
Invenção tipicamente medieval, era na universidade que os homens adquiriam formação específica nas chamadas “disciplinas maiores”, a saber, direito, teologia e medicina, que tomavam de 6 a 8 anos de estudo, normalmente dos 20 aos 26 anos de idade, após uma formação básica em “artes liberais”, dos 14 aos 20 anos de idade, composta de duas grandes partes, o trivium (lógica, retórica e gramática do latim) e o quadrivium (aritmética, geometria, astronomia e música). Logo sugiram centros de excelência nos diferentes campos de conhecimento: Paris, nas áreas de filosofia e teologia, Bolonha, no direito, Salerno, na medicina e, posteriormente, Montpellier, em direito e medicina (LOPES, 2008, p. 104).
O ensino do direito nas universidades medievais, contudo, não era pautado em regras positivas, mas em princípios gerais e postulados filosóficos que buscavam expressar os sentidos da justiça. Tratava-se de realidade imposta, inclusive, por restrições de ordem prática, na medida em que o direito positivo, na maioria dos países, incluindo a Itália e a França, berço do novo modelo de estudos, apresentava-se de modo caótico e incerto, ante o predomínio do regime feudal e a inexistência de um soberano geral e incontestado, em cenário no qual se presenciava intenso conflito entre as ordens normativas positivas, tais como os direitos reais, feudais, comunais e corporativos (DAVID, 1972, p. 62).
Nesse contexto, objeto de grande admiração era o direito romano, sobre o qual a Igreja havia edificado o direito canônico. O direito romano encontrava-se disponível na forma das compilações de Justiniano e seu conteúdo havia sido preservado na língua que a Igreja conservou e divulgou, o latim. Ademais, era a lex romana a obra de uma civilização brilhante, “que se estendera do Mediterrâneo até o Mar do Norte, de Bizâncio à Bretanha, e que evocava no espírito dos contemporâneos, com nostalgia, a unidade perdida da Cristandade” (DAVID, 1972, p. 63). Em decorrência, e tendo em vista, ainda, o caráter transnacional das universidades e a incoerência das ordens normativas internas, que inviabilizavam o estudo do direito positivo, o direito romano e o direito canônico passaram a ser utilizados como o modelo de sistema jurídico sobre o qual deveriam as faculdades debruçar-se em esforço de análise e interpretação.
O estudo sistemático dos direitos romano e canônico pelo meio acadêmico culminou na constituição do denominado jus commune, o direito comum das universidades, ensinado nos diferentes Estados nacionais, que serviu de base à formação do jurista do continente europeu. Diferentemente dos juízes e solicitadores da Inglaterra, que aprendiam a profissão a partir de um treinamento eminentemente prático, o jurista europeu era tipicamente letrado e sua formação, centrada em princípios suprapositivos, contribuiu para a estabilização da ideia de Direito nas sociedades politicamente divididas do alvorecer da Idade Moderna. Nesse sentido, José Reinaldo de Lima Lopes afirma que
é o caráter transnacional do ensino jurídico que acrescenta à cristandade uma familiaridade a mais: o ius commune, o direito comum a todos, que é o direito romano interpretado pelos doutores. Até quando se formam os Estados Nacionais, o ius commune continua a ter um papel de harmonização, que desaparecerá finalmente só no século XVIII. A universidade medieval promoveu o surgimento dos juristas e eles se identificaram com ela. Desde então, exceto na Inglaterra, os juristas serão letrados. Ao mesmo tempo, foi o estudo universitário do direito que permitiu enfrentar as disputas entre o direito secular e o canônico, os direitos reais, os direitos feudais, comunais e corporativos. Os juristas medievais retomam, secularizando-a e formalizando-a, a discussão sobre liberdade, legalidade, equidade, misericórdia, justiça. (LOPES, 2008, p. 105)
Em 1620, em Upsala, Suécia, inicia-se um processo de valorização dos direitos nacionais pela comunidade acadêmica, que teve como marco expressivo a instituição, em 1679, na Universidade de Sorbonne, em Paris, de uma disciplina de direito francês. Mas é somente no século XVIII que se verifica uma generalização do movimento pela Europa, incluindo-se definitivamente o estudo do direito positivo nacional pelas universidades de Wittenberg, Alemanha (1707), da Espanha (1741), de Oxford e Cambridge, no Reino Unido (1800) e de Portugal (1772). A pesquisa e o ensino do direito romano, contudo, permaneceriam como os elementos mais importantes dos cursos de Direito até o século XX e o período das grandes codificações, ocupando o direito nacional, em relação a ele, papel claramente secundário (DAVID, 1972, p. 64).
Durante todo esse período, contudo, a abordagem do direito romano pelas universidades não foi uniforme, tendo sido várias as escolas que se sucederam, cada uma com preocupações e métodos próprios (DAVID, 1972, p. 67). Uma primeira escola, a dos glosadores, no século XII, procurou reencontrar e explicar o sentido das leis romanas (MASSAÚ, 2013, p. 1). [4] Nessa época, alguns textos das compilações de Justiniano foram abandonados, por se referirem a instituições da Antiguidade que caíram em desuso. Atingiu seu ápice com a Grande Glosa de Acúrsio, que, retomando o trabalho de seus predecessores, produziu uma obra que comporta cerca de 96.000 glosas (DAVID, 1972, p. 67). O movimento subsequente, denominado de escola dos pós-glosadores, no século XIV, é marcado pela progressiva distorção do direito romano, com sua adaptação às novas necessidades sociais, e pela forte sistematização do direito, com a definição de ramos inteiramente novos, a exemplo dos direitos comercial e internacional privado. A esse direito romano amplamente modificado, ministrado nas universidades europeias nos séculos XIV e XV, deu-se o nome de usus modernus Pandectarum (DAVID, 1972, p. 64). Nos séculos XVII e XVIII, uma nova escola, dita do “direito natural”, triunfa nas universidades, tendo por preocupação, em lugar de compreender as regras de direito romano, descobrir e ensinar os princípios de um direito puramente racional (DAVID, 1972, p. 66). Diferenciou-se do trabalho dos pós-glosadores por abandonar o método escolástico, elevar o estudo do direito a um alto grau a sistematização e recusar a concepção clássica alicerçada na vontade divina e na natureza das coisas. O direito passa a ser visto como o resultado puro e simples da vontade humana, com a constatação de que, se o homem cria o direito, pode também modificá-lo. Nessas circunstâncias, somente a razão pode servir de guia à construção de um direito justo, pelo que o papel das universidades deveria ser, em esforço racional, “proclamar as regras de justiça de um direito universal, imutável, comum a todos os tempos e a todos os povos.” (DAVID, 1972, p. 67) É essa exaltação da razão pela filosofia iluminista, associada à nova função reconhecida à lei pelas doutrinas voluntaristas que acabou por preparar o caminho para a via da codificação. [5]
3. Fundamentos
A doutrina comparatista costuma elencar características próprias dos direitos da família romano-germânica não verificáveis nos países de common law. Trata-se de institutos ou princípios estruturais do sistema jurídico justificados por uma formação histórica peculiar, notadamente, a influência do direito comum das universidades construído sobre a base dos direitos romano e canônico.
Uma primeiro elemento típico do regime de civil law é a divisão sistemática entre direito público e privado (DAVID, 1972, p. 98). O direito romano é, basicamente, um direito privado, e a instituição do direito público, na Europa continental, surge apenas tardiamente e de modo deficiente, na medida em que o problema originário da legitimidade e imparcialidade do juiz, qual órgão do Estado, para decidir demandas movidas contra a Administração Pública, mostrou-se complexo e de difícil solução. O que hoje parece uma solução evidente – independência funcional do Poder Judiciário, temperada pela imposição da supremacia do interesse público sobre o privado, com presunção de legitimidade dos atos administrativos [6] – revelou-se, no período de formação dos Estados nacionais, desenvolvimento de intrincada composição, na medida em que governo e sociedade não estavam acostumados a essa sistemática, pesando, em verdade, severa desconfiança por parte dos particulares acerca da idoneidade do julgamento de dessa sorte de demandas. Como esclarece René David,
No plano prático, apresentam-se verdadeiras dificuldades. Como organizar jurisdições, estatuindo em nome do Estado, e que sejam, no entanto, bastante independentes do Estado? A solução de questões de direito público pela via jurisdicional pressupõe juízes que não se considerem como funcionários. Por outro lado, como levar a administração a aceitar a competência destas jurisdições e a executar as decisões por elas pronunciadas? A existência de um direito verdadeiramente público, que seja o equivalente do direito privado, exige essencialmente uma certa formação psicológica da opinião pública e dos administradores: em uns e outros, uma estrita concepção da “razão do Estado” e o sentimento de que o interesse público bem concebido exige a execução das decisões emanadas dos tribunais em matéria de direito público, mesmo quando resultem para a administração dificuldades imediatas ou certo prejuízo. (DAVID, 1972, p. 99)
O fato é que, tanto pela relativa novidade da matéria quanto pela sensibilidade política em torno do tema, o direito público atingiu, nos países de tradição romano-germânica, um grau de desenvolvimento e perfeição bastante inferior ao do direito privado. A divisão básica entre direito público e privado no sistema de civil law, além de se justificar pela discrepância dos períodos de surgimento das respectivas regras de fundo, acompanhou as reais dificuldades da ciência do Direito em formular teorias e arranjos estruturais que viabilizassem a execução prática de normas limitativas do poder público. Nos países de common law, inexiste essa diferenciação: construído eminentemente sobre considerações de processo e, ao menos originalmente, desvinculado do vasto arcabouço privatista do direito romano, todo o direito anglo-saxônico é tido como direito público. E, talvez pela ausência de uma formação científica para os juristas de common law, não houve sistematização das soluções judiciais para as demandas entre particulares ao ponto de se cristalizar uma divisão categórica entre os ramos de direito público e privado. De seu turno, o direito romano-germânico desconhece a divisão entre common law e equity, soando até mesmo absurda para um jurista de civil law, formado por universidades que operavam longas considerações de ordem jusnaturalista, a concepção um direito que, em si mesmo, não seja equitativo.
Outro caractere fundamental do sistema romano-germânico é a comunhão, pelos países dele integrantes, de determinados ramos do direito desconhecidos do regime de common law, a exemplo do direito das obrigações. Originário do direito romano, o regramento das obrigações teve sua perfeição técnica altamente desenvolvida ao longo dos séculos em que foi objeto de reflexão e aprimoramento nas universidades europeias, encontrando-se presente em todos os direitos da família de civil law. Apesar disso, o próprio conceito de obrigação, elementar nos países de tradição romanista, inexiste no direito anglo-saxônico, sendo a própria palavra intraduzível para o inglês jurídico (DAVID, 1972, p. 104). No âmbito do direito público, outrossim, não obstante a existência de certas distinções pontuais, há uma identidade sistemática dos princípios basilares nos diferentes ordenamentos, a qual também se explica pelo intercâmbio de ideias propiciado pelo meio acadêmico. Com efeito, “a ciência jurídica nada mais fez, por vezes, que dar executoriedade, no plano do direito, às ideias e tendências que inicialmente se manifestaram em outro plano, filosófico ou político”, pelo que a influência de obras como as de Montesquieu e Rousseau, no direito constitucional, e Beccaria, no direito criminal, é considerável e nítida nos países do raio de alcance do civil law (DAVID, 1972, p. 105).
O papel da doutrina na elaboração da regra de direito é outra característica marcante do sistema romanista. Nos países de tradição romano-germânica, o direito está longe de ser o resultado exclusivo de uma reflexão teórica, estabelecida a priori, na busca de uma construção perfeitamente lógica. Há uma supletividade expressiva do ordenamento pelo trabalho da jurisprudência, não se podendo dela olvidar quando o objetivo seja a busca pela norma aplicável a determinada situação concreta. Ocorre que a doutrina, em todos os países do civil law, não se contenta com a tarefa de sistematizar o direito legislativo e jurisprudencial, mas se considera investida da função de “formular, acima dessa massa que progressivamente se forma ao acaso dos acontecimentos e sob pressão da urgência, sem princípios diretores bem definidos, as regras de direito que futuramente inspirarão os juízes e os práticos.” (DAVID, 1972, p. 112) Isto é: o jurista de civil law considera-se apto a, em trabalho de sistematização, elaborar proposições normativas, situando a regra de direito na posição intermediária que figura abaixo da lei e acima da decisão judicial, na busca incessante pelo grau ideal de generalidade da norma. Trata-se de tarefa árdua, mas de importância fulcral no sistema romanista. Em verdade,
A regra de direito decanta e purifica a prática, rejeitando os elementos discordantes ou supérfluos. Simplifica o conhecimento do direito, reduzindo a massa dos elementos que devem ser tomados em consideração. Confere um sentido a estes elementos, mostrando como concorrem para assegurar uma melhor justiça social e uma ordem econômica ou moral mais segura. Permite à opinião pública, ao legislador, intervir mais eficazmente no sentido de corrigir certos comportamentos ou mesmo orientar a sociedade em direção a determinados fins. Esta função atribuída ao direito conforma-se plenamente com a tradição, segundo a qual o direito tem de ser concebido como um modelo de organização social. O caráter ordenador e político, e não estritamente contencioso do direito, encontra-se confirmado e reforçado na época atual, em que se espera que o direito contribua para criar uma sociedade muito diferente da do passado. A concepção da regra de direito admitida na família romano-germânica é a base fundamental da codificação, tal como se concebe na Europa continental. (DAVID, 1972, p. 113)
A interpretação do direito é outro traço distintivo do sistema romano-germânico. Tendo em vista o nível de generalidade das proposições jurídico-normativas, o raciocínio do jurista de civil law é todo pautado em uma tarefa de interpretação das fórmulas legislativas, diversamente do que ocorre no common law, onde a técnica jurídica se caracteriza pelo método das distinções. Enquanto no sistema saxônico a regra de direito ideal é a mais específica possível, na tradição romanista espera-se que o preceito normativo deixe certa margem de liberdade para a atuação do magistrado, sendo a função da lei unicamente “estabelecer quadros para o direito e fornecer ao juiz diretivas” (DAVID, 1972, p. 115), na medida em que é impossível ao legislador prever, na sua variedade, todos os problemas concretos que se apresentarão na prática. Há, pois, “regras de direito secundárias” (doutrina e jurisprudência) ao lado de “regras primárias” (leis ou atos normativos do Poder Executivo). A diferença básica entre os regimes de civil law e de common law, neste ponto, é que as regras de direito secundárias nos países de origem romano-germânica ostentam maior generalidade que as normas de direito jurisprudencial anglo-saxônico (DAVID, 1972, p. 117).
3.1 A tendência à codificação e o primado da lei
Em todos os países que adotam o civil law, há uma prevalência explícita do direito escrito e legislado em detrimento das demais fontes do direito. Doutrina, jurisprudência e costume gozam, nitidamente, de um status normativo inferior, sendo utilizados exclusivamente como fonte supletiva, no caso de a legislação não solucionar a contento determinada questão (LIMA, 2013, p. 82). As leis, ademais, são estruturadas segundo um padrão hierárquico, no topo do qual figura a Constituição, e sob cujos preceitos são editados uma série de outros atos normativos de hierarquias diferentes (lei complementar, lei ordinária, decretos, portarias, ordens de serviço, etc.).
No século XIX, o triunfo dos ideais positivistas desencadeou um movimento de codificação nos países da família romano-germânica. [7] Influência decisiva nesse processo exerceu a França, com a publicação, em 1804, do Código de Napoleão, o Código Civil Francês, e, posteriormente, mais quatro códigos napoleônicos (Código Penal, Código de Processo Penal, Código de Processo Civil e Código Comercial). Nos diversos Estados do civil law, encontram-se os mesmos cinco códigos de base, sendo exceção, na Europa, os países nórdicos, que optaram por promulgar, cada um deles, um único Código, voltado a abarcar todo o direito nacional – caso da Dinamarca, em 1683, Noruega, em 1687, e Suécia e Finlândia, em 1734. Idêntica disposição demonstrou a Prússia, como o Allgemeines Landrecht, de 1794 e a Rússia, com o Svod Zakonov, de 1832 (DAVID, 1972, p. 128-129).
3.2 O papel da jurisprudência e do precedente
Há, pois, no sistema romano-germânico, uma disposição judicial inteiramente diversa da que existe nos países em que vigora a common law. O juiz do civil law, tradicionalmente, sente-se necessariamente subordinado ao conteúdo da lei, e a solução dos litígios dá-se pela técnica interpretativa e não pelo retorno às decisões judiciais pretéritas, submetidas ao método das distinções. Diferentemente do que ocorre no regime anglo-saxônico, em que, historicamente, coube aos juízes construir literalmente o conteúdo das regras de direito, nos países de tradição romanista, há um respeito cerimonial do magistrado às proposições normativas, porquanto elaboradas cuidadosamente pelo legislador e sistematizadas de forma racional e lógica pela dogmática jurídica, no decorrer de séculos de ciência do Direito.
Não significa isso dizer, contudo, que a jurisprudência não seja importante fonte do direito nos países de civil law: como já referido, há, também nesses países, uma consciência geral da incapacidade do legislador de antever todos os fatos passíveis de submissão ao crivo do Judiciário, diante do que, não raro, a própria lei autoriza o recurso, nas decisões judiciais, à analogia, aos costumes e aos princípios gerais do direito. É o caso, por exemplo, do art. 4º, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, segundo o qual “quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.” (BRASIL, 1942, p. 1). Por analogia pode-se compreender, por óbvio, as decisões judiciais já proferidas para casos semelhantes, pelo que a jurisprudência é, inegavelmente, recurso fundamental para o suplemento da ordem jurídica.
Verifica-se, porém, por tudo quanto já exposto, uma cultura geral na qual o magistrado abstém-se o quanto possível de, declaradamente, criar o direito. Chega-se ao ponto de mascarar a atividade normativa por uma suposta interpretação do direito, notadamente, quando do manejo de conceitos jurídicos abertos ou indeterminados. O direito jurisprudencial, pois, nos países de civil law, é reconhecidamente fraco quando em comparação com a lei; é frágil e suscetível de modificação a todo tempo, vez que, em regra, não obriga ou compele senão às partes do litígio, não vinculado o órgão jurisdicional que emanou o julgado, nem as jurisdições a ele inferiores, e, muito menos, particulares não integrantes da relação processual originária; é, precisamente, o oposto do precedente de common law, ostentando, em regra, eficácia meramente persuasiva.
Nesse contexto, evidente que a hodierna rejeição à regra do precedente vinculante ou stare decisis pelo regime de civil law não é fruto do acaso. É o resultado da opção histórica dos países do continente europeu pela adoção do modelo pré-fabricado do direito romano, em oposição à estratégia tipicamente inglesa de outorgar aos magistrados o poder de, a partir do caso concreto, construir um direito de base jurisprudencial. A regra do stare decisis é contrária à original tradição romanista exatamente porque não há, nos países de civil law, a necessidade verificada nos regimes anglo-saxônicos de conter o arbítrio do julgador, que, em sede de common law, é livre para ditar o direito segundo o que lhe pareça a justiça no caso concreto, vez que a lei, ali, somente possui eficácia na medida em que reconhecida pelo precedente. A partir da segunda metade do século XX, porém, esse quadro passou a apresentar forte tendência de mudança.
4. Aproximação entre os sistemas de common law e de civil law
A noção de aproximação entre os sistemas jurídicos anglo-saxônico e romano-germânico tem sido objeto recorrente de abordagem pela doutrina nacional e internacional. Luiz Guilherme Marinoni (2009, p. 39) afirma que, com o desenvolvimento do constitucionalismo, “o juiz do civil law passou a exercer papel que, em um só tempo, é inconcebível diante dos princípios clássicos do civil law e tão criativo quanto o do seu colega do common law.” René David (1972, p. 352), por sua vez, discorre acerca de “um movimento de aproximação entre o direito inglês e o direito do continente europeu”, o qual é estimulado pelas necessidades do comércio internacional e favorecido por uma mais nítida consciência das afinidades que existem entre os países europeus ligados a certos valores da civilização ocidental.
Jaime Domingues Brito e Flávio Luís de Oliveira (2013, p. 1), de seu turno, após estudo minucioso do papel do precedente nos países de origem anglo-saxônica, declaram que “Não há dúvida de que o sistema jurídico brasileiro tem-se aproximado do sistema da common law que vigora na Inglaterra e nos Estados Unidos da América”, referindo a um gradativo processo de vinculação da jurisprudência, iniciado já pelo Código de Processo Civil de 1939, “que, em seu artigo 861, trazia disposição expressa de que o Tribunal poderia promover o pronunciamento prévio sobre a interpretação de qualquer norma jurídica.”
Corroborando a ideia de aproximação entre os sistemas, Roberta Calvano, citada por Brito e Oliveira (2013, p. 1), ao tratar da ordem jurídica italiana após o surgimento da Lei Fundamental de 1947, declara que o stare decisis, antes tido como especificidade do sistema inglês, atualmente é encontrado, em seus traços gerais, como prática difundida em todo o continente europeu.
Osvaldo Agripino de Castro Júnior (2013, p. 1), a seu tempo, relata que, com a globalização da economia, a criação de blocos econômicos, o comércio entre os vários povos, o aumento das comunicações entre os Estados e a necessidade de maior segurança jurídica entre os vários sistemas jurídicos, “verifica-se um processo de aproximação gradual, ou melhor, fusão dos dois maiores sistemas jurídicos do mundo ocidental,” a saber, o common law, também denominado de direito anglo-saxônico ou inglês, e o civil law, de origem romano-germânica ou continental.
Pedro Paulo Guerra de Medeiros (2013, p. 1), discorrendo acerca do fortalecimento do precedente no sistema jurídico brasileiro, afirma que se verifica atualmente “nítida tendência de objetivação das decisões definitivas do Supremo Tribunal Federal em controvérsias que chegaram à Corte pela via concreta, difusa, independentemente da falta de expressa positivação no direito positivo nesse sentido.” O autor refere, ainda, ao enfoque que a moderna teoria constitucional tem dado à atividade a ser desempenhada pelo Supremo Tribunal Federal, priorizando o papel de Corte Constitucional ao de órgão de cúpula do Poder Judiciário. Acerca da efetiva convergência entre os sistemas na experiência brasileira, declara que:
A pureza teórica da common law, em sua perspectiva originária, tem sido mitigada na atualidade. Apesar de não se cogitar da supressão do precedente, passou-se a concebê-lo apenas como o ponto inicial da solução da lide. Espancou-se definitivamente a inexorabilidade do leading case. [...] O Brasil se encontra hoje em uma estranha posição relativamente à sua filiação jurídica. Nos livros de doutrina ele pertence , como dito, ao tronco da civil law. Entretanto, no plano normativo essa petição de princípio é desmentida. De fato, ao lado de incontestável predomínio da regra escrita existe a supremacia da vinculação a uma decisão tomada por um tribunal mais alto. É o que ocorre com as decisão prolatada na denominada Ação Declaratória de Constitucionalidade. (MEDEIROS, 2013, p. 1)
Outrossim, Beatriz Medina Maia Novaes de Castro (2010, p. 29), em interessante dissertação de mestrado oferecida à Universidade Estadual do Rio de Janeiro, alude a uma aproximação entre os sistemas da common law e da civil law, ao declarar que “a jurisprudência tem ampliado seu papel nos países da família romano-germânica, apresentando-se, em cada país, de forma mais ou menos forte.” Aduz, ademais, que a autoridade da jurisprudência é reforçada nos países que possuem codificação antiga, uma vez que as a legislação se mostra, em muitos casos, insuficiente, já que deixa de refletir a realidade social da época, dando azo a que as decisões reiteradas dos tribunais ganhem relevo, passando a ser o socorro imediato para a solução de determinado caso concreto (CASTRO, 2010, p. 29).
Guilherme Levien Grillo (2013, p. 1) afirma que há, de fato, uma “aproximação do direito continental ao direito anglo-saxão”, pelo que se faz necessário compreender o funcionamento deste, além de confrontá-lo com a posição contemporânea da hermenêutica. Nesse sentido, declara que, também “dentro do sistema da common law, a cega observância dos precedentes, sem qualquer atividade de interpretação, é radicada no interior de uma concepção ultra-positivista”, pelo que se faria necessário o desenvolvimento de uma hermenêutica dos precedentes (GRILLO, 2013, p. 1).
Dário Moura Vicente (2013, p. 1), professor catedrático da Universidade de Lisboa, comunga do entendimento de que a moderna experiência jurídica brasileira vivencia uma espécie de fusão entre os sistemas inglês e continental ao afirmar que “a convergência entre os sistemas jurídicos em exame [i.e., os da common law e da civil law] deu-se também, posto que de forma mais mitigada, no Brasil, onde se manifestou sobretudo no Direito Constitucional.” Entende o doutrinador, contudo, que a influência do direito anglo-saxão remonta a um período anterior ao das recentes reformas legislativas. Com efeito, leciona o eminente jurista:
A Constituição brasileira de 1891 consagrou o modelo constitucional norte-americano, reconhecível, designadamente, no modelo federal do Estado, então adotado, no acolhimento do sistema de governo presidencialista e no papel atribuído ao poder judiciário, que passou a ter no seu vértice um Supremo Tribunal Federal dotado de poderes de fiscalização da constitucionalidade das leis. Este esquema constitucional passou, bem que atenuado, para as constituições brasileiras posteriores. Mas a influência norte-americana não se cingiu à conformação dos poderes constituídos: à época da referida Constituição, o Common Law e a Equity valiam como Direito subsidiário nos casos submetidos aos tribunais federais brasileiros. (VICENTE, 2013, p. 1)
Felipe Quintella Machado de Carvalho (2009, p. 1), na mesma linha, sustenta vivenciar-se “tempos de forte aproximação entre os dois grandes sistemas jurídicos ocidentais – os já referidos sistemas de common law, ou anglo-saxão, e de civil law, ou romano-germânico”, pelo que reputa de interesse à doutrina brasileira proceder a um estudo das fontes formais do Direito nos Estados Unidos, onde, segundo afirma, a teoria das fontes foi bem desenvolvida desde a independência do país em 1776.
O eminente professor José Miguel Garcia Medina (2013, p. 1) também compartilha o entendimento de que, nos dias atuais, há “uma aproximação do papel do juiz (especialmente dos ministros do STF), do sistema brasileiro, com tradição romano-germânica, ao sistema de common law, no qual os juízes têm papel de judge-make-law.” Como causas prováveis do movimento, o autor aponta o crescimento da judicialização dos conflitos, que exigiu do Judiciário maior esforço interpretativo para pacificação social, e a evolução do constitucionalismo e dos direitos humanos, que impuseram a adoção de conceitos jurídicos abertos e indeterminados nas diferentes ordens nacionais. In verbis:
Na perspectiva das mudanças pelas quais o Direito passou nas últimas décadas, com a Revolução dos Direitos Humanos ocorrida no pós-guerra, adoção de constituições democráticas com declarações de direitos fundamentais, a assunção dos direitos humanos e fundamentais com status de supremacia no âmbito político e jurídico das sociedades contemporâneas, percebe-se um crescimento da atividade das supremas cortes e cortes constitucionais em diversos Estados, tanto aqueles com tradição no civil law quanto aqueles com tradição no common law. Esse aumento de atividades assumidas pelo Poder Judiciário e cortes constitucionais se dá não só do ponto de vista quantitativo, de aumento dos casos e da demanda da sociedade em relação ao Judiciário, mas também sob o ponto de vista qualitativo, passando os tribunais a terem de enfrentar diversos assuntos que envolvem questões políticas, morais, econômicas, de relevante importância para a comunidade. Aliado ao movimento da judicialização da política, tem-se que o caráter aberto das normas de direitos humanos e fundamentais acaba conferindo aos juízes o poder de instituir os valores de moralidade política que irão dar significados a esses direitos, muitas vezes em detrimento de uma deliberação política por parte do Parlamento. (MEDINA, 2013, p. 1)
Paulo César Busato (2013, p. 1), ao discorrer sobre as fragilidades de ambos os sistemas, afirma que os dois últimos séculos “demonstraram a necessidade de reciclagem do sistema do common law” e que “as perspectivas sociais e econômicas do futuro apontam para exigências ainda mais intensas no que tange à prestação jurisdicional e à necessidade da uniformização de decisões”. Declara, ainda, que nessas circunstâncias, “o sistema inglês deverá também forçosamente migrar em direção de uma aproximação com o civil law.” (BUSATO, 2013, p. 1
5. Conclusão
O Império Romano, fundado por Augusto em 27 a.C., conheceu uma civilização brilhante, cujo gênio legou ao mundo um sistema jurídico nunca antes visto. As invasões de diversos povos bárbaros, em especial os germanos, contudo, levaram à queda do Império Romano do Ocidente no século V d.C. Gradualmente, foi-se verificando a miscigenação entre os diversos grupos étnicos e, com a feudalidade crescente, voltaram a vigorar os costumes locais, com perda do valor primitivo conferido à lei.
Durante a Alta Idade Média (séculos V a ao XI d.C.), verificou-se significativo declínio do direito escrito, que, por sua vez, levou à decadência da própria ideia de Direito, época em que muitos dos costumes vigentes contavam com a utilização de ordálios ou “juízos de Deus” (judicium Dei) quais critérios para a solução de litígios.
Com o ressurgimento das cidades e do comércio, a sociedade constata novamente a imprescindibilidade do direito, visto como o único instituto capaz de assegurar a ordem e a segurança que permitem o progresso. A formação do sistema jurídico romano-germânico, pois, está ligada ao renascimento cultural que se produz nos séculos XII e XIII no Ocidente europeu, que preparou o caminho para o amplo movimento de retorno aos valores da antiguidade clássica operado nos séculos XIV a XVI. O principal meio pelo qual as novas ideias se espalharam, favorecendo a retomada do valor conferido ao direito romano, foi constituído pelos novos focos de cultura criados na Europa, em especial as universidades.
São características típicas do sistema de civil law ou romano-germânico: a) a divisão sistemática entre direito público e privado; b) a comunhão, pelos países dele integrantes, de determinados ramos do direito desconhecidos do regime de common law, a exemplo do direito das obrigações; c) o papel da doutrina na elaboração da regra de direito, com reflexão teórica, estabelecida a priori, na busca de uma construção perfeitamente lógica da proposição normativa; d) à tendência à codificação e o primado da lei; e) a interpretação do direito, voltada à exegese, por vezes meramente artificial, das fórmulas legislativas, em oposição à atividade francamente criativa da jurisdição nos sistemas de origem saxônica; f) o caráter secundário da jurisprudência como fonte do Direito.
A partir do século XX, verifica-se um movimento de recíproca aproximação entre os sistemas jurídicos anglo-saxônico e romano-germânico, atribuído pela doutrina, sobretudo, às necessidades do comércio internacional, que estimulou uma nítida consciência das afinidades que existem entre os países europeus ligados a certos valores da civilização ocidental, e ao desenvolvimento do constitucionalismo no período posterior à Segunda Guerra Mundial, com o reconhecimento da supremacia da Constituição e da força normativa dos princípios constitucionais, que conferiu ao juiz do civil law poderes cada vez mais assemelhados aos historicamente outorgados aos magistrados de common law.
NOTAS
[1] Após a morte de Teodósio I, em 395 d.C, o Império Romano foi dividido em duas partes. O Império Romano do Ocidente durou até 476 d.C, quando Rômulo Augusto abdicou em favor do chefe germânico Odoacro. O Império Romano do Oriente permaneceu até 1453 d.C, quando da queda de Constantinopla, então governada por Constantino XI Paleólogo, para os turcos otomanos, liderados pelo sultão Maomé II. Cf. MELLO; COSTA, 1995, p. 172.[2] São exemplos de ordálios ou “juízos de Deus” a decisão por ferro incandescente e água, o andar sobre o fogo e as águas de amargura (ingestão de água contaminada pela mulher suspeita de adultério), nos quais se verificava a culpa ou inocência do acusado a partir dos efeitos que as provas produzissem em sua vida ou saúde física. Cf. COSTA; MELLO, 1993, p. 189-190.[3] Atribui-se ao romanista francês Dionísio Godofredo, em 1538, na edição que dele fez, a denominação de Corpus Iuris Civilis (Corpo de Direito Civil) ao conjunto das obras de Justiniano, designação hoje universalmente adotada. Cf. MARTINS, 2012, p. 1.[4] MASSAÚ, 2013, p. 1: “A Escola dos Glosadores, iniciada por Irnério, constitui um marco de suma importância na história do Direito, tanto na parte condizente ao conhecimento do pensamento jurídico como teoria e prática. O Direito assume, definitivamente, uma posição autônoma no conhecimento, pois volta-se ao estudo específico. Devido à influência pioneira dos glosadores surgem as primeiras Universidades Ocidentais, a primeira nascida em Bolonha, a alma mater, com os referidos glosadores, que serviu como modelo de ensino para as demais instituições, o que estimulou o desenvolvimento de outros métodos, como ocorreu na Universidade de Orleães, com os Ultramontani, que se serviam da dialética escolástica e fizeram críticas às glosas de Acúrsio. Através disso e da convergência de estudiosos para Bolonha, pôs em evidência o método glosador. Como se pode observar, Bolonha não vive em isolamento, em diversas partes da Europa o estudo civilístico se desenvolveu com outros métodos, não tão destacáveis, e que se contrapõem dialeticamente com Bolonha. O surgimento do plano de estudo dos glosadores ainda está envolto em questões controversas, principalmente, quando se refere a recepção dos textos romanos e dos juristas precursores da análise desse direito.”[5] O desenvolvimento da ideia de direito natural pode ser resumido nos seguintes períodos sucessivos: a) indiferenciação, verificado nas sociedades primitivas, em que o direito se mostra indissociado da religião e da moral; b) jusnaturalismo antigo, fruto da centelha de racionalidade advinda da filosofia pré-socrática, no qual se postula a existência de um direito natural, justo por excelência, inerente à natureza material e humana, ainda que não manifestado no regramento positivo (conflito entre physis e nomos); c) jusnaturalismo teológico, de construção medieval, em que os estudiosos, pelo método escolástico, valiam-se da filosofia para uma concepção teológica do direito, na busca de um equilíbrio entre fé e razão; d) jusnaturalismo racionalista, escola de base antropológica, fundada na razão humana autônoma, em que se substitui a concepção de direito natural objetivo e material (século XIII) pela doutrina jusnaturalista do tipo subjetivo e formal (século XVII); e) jusnaturalismo democrático ou historicismo casuístico (século XIX), que propugna repousar o direito natural na “vontade geral do povo” ou “consciência popular (Volksgeist)”, no dizer de Savigny, sendo representada principalmente pelos jusfilósofos alemães Gustav Hugo, Friedrich Carl von Savigny e George Friedrich Puchta. Para um exame mais aprofundado da história do jusnaturalismo e do juspositivismo no sistema romano-germânico, vide LIMA JÚNIOR, 2013, p. 1.[6] Na França, país também adepto do regime de civil law, optou-se por estruturar um sistema específico de jurisdição chamado de “contencioso administrativo”. Nele, as demandas movidas em face do Estado não são da competência do Poder Judiciário, mas de um tribunal administrativo, que tem em seu ápice um órgão do Poder Executivo (Conselho de Estado). É um modelo hoje utilizado pela Itália, Alemanha e Uruguai, dentre outros países. No Brasil, tentou-se sua instituição durante o Império e, na Constituição de 1967, criou-se mecanismo com esse nome, mas sem seus principais atributos, o qual, contudo, jamais chegou a ser implantado. Cf. GASPARINI, 2003, p. 784.[7] Pela expressão “código”, entende-se, nos países de civil law, a lei ordinária que busca exaurir a regulamentação sobre determinado ramo do Direito. Originalmente, a palavra foi empregada para referir a compilações onde eram reunidas diversas leis, a exemplo do Código de Teodósio e do Código de Justiniano, que nada mais eram do que coleções de leis romanas esparsas. No século XIX, utilizou-se a denominação para obras que visavam expor os princípios essenciais do jus commune, declarado aplicável em um Estado, mas, alegadamente, dotado de vocação universal. Atualmente, o termo designa compilações que procuram reagrupar e expor sistematicamente a regulamentação relativa a determinada matéria particular. Cf. DAVID, 1972, p. 128.
Referência:
JÚNIOR, Cláudio Ricardo Silva Lima. Fundamentos do sistema jurídico romano-germânico: origem, atributos e aproximação com o sistema anglo-saxônico. 12.6.2014. Disponível em: <http://www.conteudojuridico.com.br/artigo,fundamentos-do-sistema-juridico-romano-germanico-origem-atributos-e-aproximacao-com-o-sistema-anglo-saxonico,48997.html>.
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