terça-feira, 30 de junho de 2015

Conceito Clássico e Pós-Clássico do Jus Naturale e do Jus Gentium

Enviado por: Rafaella Andreolli Pohlmann

Autor do texto: Ernani Guarita Cartaxo
A propósito da compreensão do jus privatum, as fontes romanas exibem tal vacilação de conceitos, que, por via dessa desconformidade teórica, foram os intérpretes, que versaram a interessante questão, levados a se situarem em campos diversos, senão antagônicos, em correspondência às posições, que entendem fixadas pela opinião dos jurisprudentes romanos.

Que a sistemática romana é imprecisa-a esse respeito, provam-no as Institutas, ainda que se possa mais culpar a ciência dos juristas da decadência que a doutrina dos escritores compilados. Numa obra de síntese, elaborada em quatro resumidos livros, e destinada a conter apenas os rudimentos de toda a ciência jurídica , incluída nos cinquenta livros de Digesto, haveriam de surgir os contrastes de opinião, que seriam, agora, da própria obra e não dos autores, que se citavam, sem menção do seu nome.

Com efeito, como veremos mais adiante, a doutrina das Institutas acolhe a divisão bipartida do direito privado, de acordo com Gaio, ao lado da divisão tripartida, conforme a expôs Ulpiano. Inclui a noção de um jus gentium, que flutua contraditoriamente na indeterminação conceitual do seu alcance, ora identificado com o ius naturale até os limites extremos de uma perfeita sinonímia vocabular, ora divergente dele, não só nas suas origens ou na compreensão do objeto de suas incidências peculiares, como até nas abertas antinomias, em que se contradizem, a ponto de um significar a negação do outro, no antagonismo das instituições, que derivam de um e outro.

Dessa indeterminação de conceitos teóricos não se furtou o Digesto, se bem que os  processos da codificação dos jura melhor marcasse as falhas da presumida unidade doutrinária da compilação, em que até as próprias contradições seriam sempre conciliáveis, já que a fragmentação propositada dos textos transcritos contribuía para dificultar a constatação das antinomias resultantes da opinião dos autores citados.

Em face da doutrina do Digesto, os critérios usados na subdivisão do jus privatum admitem uma tripla classificação, de conformidade com a nomenclatura de que usam os jurisconsultos mais representativos de cada qual dessas correntes:
1) a de Ulpiano, segundo a qual o direito privado se divide em jus naturale, jus gentium e jus civile;
2) a de Gaio, para quem jus privatum compreende o jus gentium e o jus civile;
3) a de Paulo, que o apresenta dividido em jus naturale e jus civile.

Para evidenciar, nas suas afinidades e antagonismos, a correlação dessas classificações, é de se notar que todas as teorias são concordes na conceituação dada ao jus civile, que é, como se viu, a parte do direito privado identicamente adotado em todas elas.

Segundo Ulpiano, o direito civil é aquele que nem se afasta de todo do direito natural ou das gentes nem de todo se subordina a ele; assim quando acrescentamos ou tiramos alguma cousa ao direito comum, fazemos um direito próprio, isto é, civil.

 No conceito de Gaio, todos os povos, que se regem por leis e costumes, usam de um direito, que lhes é próprio em parte' e é em parte comum a todos os homens; aquele, que cada povo constituiu para si, é o direito próprio da cidade e se chama direito civil, como direito peculiar dela mesma.

Paulo entende que o direito é tomado em várias acepções, e, numa delas, é aquele que, em cada cidade, é útil a todo ou à maior parte, e tal é o direito civil, que coexiste ao lado do direito geral.

 Em todas essas definições, há visível concordância de vistas, expressa na invocação do mesmo elemento teórico-histórico, que explica a formação do jus civile como um processo resultante da particularização do direito comum em proveito da cidade, e essa analogia de conceitos está indicando que os seus autores deviam filiar-se a uma mesma corrente de opinião, em face da qual a conceituação dada àquele direito comum não podia extremar-se em conflitos inconciliáveis.

 Assim não sucede, entretanto, graças principalmente às ideias de Ulpiano, conforme as expõem os redatores do Digesto, as quais criam, no conjunto doutrinário dos jura, visível desconformidade com as demais opiniões transcritas, obrigando os exegetas a um trabalho de acomodação, que ora varia nos seus propósitos ou na escolha dos planos comparativos de referência, ora resulta em conclusões indeterminadas, de fundo ou de forma, que hão de perpetuar ad infinitum as perplexidades dos textos.
Voltemos, porém, às três classificações deduzíveis da subdivisão do jus privatum:

1) Classificação de Ulpiano. As ideias de Ulpiano crescem, no caso, de significação, pois foi sobre elas que Triboniano e seus assessores assentaram, na abertura do livro primeiro do Digesto, a sistemática introdutória do direito, compreensiva das suas noções propedeuticas, inclusive as relativas à sua divisão fundamental, a cujo propósito ditou o jurisconsulto, segundo o fragmento transcrito, a doutrina da classificação tripartida do direito privado, que se compõe de preceitos do jus naturale, gentium e civile.

A expressão jus tripertitum dá o conceito categórico da tricotomia do direito, com a consequência, sob todos os- aspectos invencível, de lhe parecerem distintos e diversos o jus naturale e o jus gentium.

 Essa conclusão, aliás, nem precisaria ser deduzida, pois o texto caracteriza expressamente um e outro desses direitos, traçando-lhes o entendimento conceitual.

 Jus naturale é aquele que a natureza ensinou a todos os animais, quod natura omnia animalia docuit . Jus gentiúm é aquele de que usam todos os povos, quo gentes humana e utuntur.

Não estivesse, já de si, clara a especificação diversificante do objeto de cada qual desses direitos, restaria ainda a distinção, que faz expressamente o fragmento, ao acentuar que é fá- cil entender como o jus gentium se diferencia do naturale, pois que este é comum a todos os animais e aquele o é somente aos homens entre si, quod a naturale recedere facile intelligere licet quia illud on nibusanimalibus, hoc solis hominibus inter e commune sit.

Indo mais longe, exemplifica Ulpiano, no seguinte fragmento, o antagonismo (e não apenas a diferença), que separa os dois tipos de direito, ao relatar que a manumissão teve a sua orígem no jus gentium (quae res a jure gentium sumpsit), pois, como pelo direito natural, todos os homens nasceram livres (utpote quum jure naturali omnes liberi nascerentur,) não se conhecia a manumisão, desconhecida que era a escravidão (nec esset nota manumissio, quum servitus esset incognita); mas depois que surgiu, com o jus gentium, a escravidão, seguiu- -se o benefício da manumissão (sed posteaquam jure genti'U/m se'J'vitusinvusit, secutum est beneficium manumissionis).

Estão em jogo, nesse exemplo, que é, antes de tudo, a afirmação de um princípio teórico, os dois institutos, que caracterizam o máximo de contradição, no conflito das realidades humanas, e sobre excedem o simples plano jurídico, para conceituar uma norma fundamental de ética: a liberdade e a escravidão . Pois bem. Segundo a derivação de preceitos, exposta por Ulpiano, a liberdade é uma decorrência lógica do direito natural, pois é este que justifica o fato dos homens nascerem livres. Em sentido inverso, a escravidão tem a sua fonte no jus gentium, e sobre este se assenta a sua legitimidade, prática usada pelos povos, em geral. O antagonismo dessas instituições há de refletir o antagonismo das origens ético-jurídicas, de que ambas decorrem, porquanto é de se entender que esses dois tipos de direito não apenas se diversificam, mas até se negam, como a escravidão nega a liberdade.

O conflito aberto entre a escravidão e o direito natural é expressamente denunciado nas Institutas, nesse elucidativo passo: Jus aute'm gentium omni humano gene'ri commune esteNam usu exigente et humanis necessitatibus, gentes humanae quaedam sibi constituerunt; bella etenim orta sunt et captivitates secutae et servitudes, quae sunt naturali juri contrariae,' jure enim naturaliomnes homines ab initio liberi nascebantur.

A escravidão - escreve-se aí-, instituída pelo jus gentium, é contrária ao jus naturale.

Mas não Só nessa diversidade de aspectos, divergem os dois direitos, entre os quais Ulpiano reparte o jus privatum. Divergem ainda, como vimos, pelo objeto, que lhe assinala ° jurisconsulto, nos passos já transcritos. Divergem, enfim, no característico peculiaríssimo, que dá Ulpiano ao direito natural, que, sendo aquele' que a natureza ensina a todos os animais, é também um direito comum aos homens, embora não seja exclusivo dele (... jus istud non humani gerwris p1'oprium, sed omnium animalium, quae in te1'ra, quae in mari nascuntur, avium quoque, commune est.

Há razões evidentes para se perceber que o texto procura - realçar as peculiaridades desse jus naturale, em ordem de distingui-lo do jus gentium da definição de Gaio e da exemplificação de Hermogeniano , a que aludiremos a seu tempo.

Do jus naturale procede - segundo o texto de Ulpiano - a união do macho e da femea, que nos chamamos matrimônio; dele a procriação dos filhos; dele a sua criação; pois vemos que também os demais animais, até as feras, se governam pelo conhecimento deste direito.

A conceituação do jus naturale de Ulpiano é algo de tão extraordinário, no plano das ideias jurídicas do direito clássico, que a autenticidade dos textos invocados é posta em dúvida, como veremos logo mais.

Por ora acentuaremos, apenas, a integral diferenciação dê conceitos, que informam a noção ulpianea do jus natural e do jus gentium, para fixar o valor teórico da divisão tricotomica do jus privatum.

2) Classificação de Gaio. Enquanto no texto de Ulpiano o direito se triparte em direito próprio dos romanos (civile), direito comum a todos os povos (gentium) e direito comum aos homens e aos animais (naturale), Gaio no-lo apresenta dividido em duas partes: jus civile e jus gentium.

Se já lhe apreciamos o conceito dado ao direito civil, vez é agora de completarmos o entendimento do texto parcialmente citado.

Diz Gaio que todos os povos usam de dois direitos: o seu, que lhes é próprio, e outro, que é comum a todos os homens; e depois de definir o jus civile, adverte: mas aquele, que a razão natural estabelece entre todos os homens, é por todos igualmente observado e se chama jus gentium; como direito de que usam todos os povos.

Incontestavelmente, a noção do jus gentium, que Gaio transmite nesse e em outros passos, é a que parece conservar a pureza das fontes legitimamente romanas, em consonância com a sistemática do pensamento clássico, fundado essencialmente no equilíbrio dos valores práticos e teóricos, nos escassos voos, que se permitiam os seus juristas até às regiões da abstração ou da especulação filosófica.

Gaio, no pragmatismo das suas concepções, não vai além daquela invocação à ratio naturalis, que lhe é, na estruturação do direito, o elemento informativo das normas condizentes com a natureza humana, antes que com a natureza em si. O jus gentium se lhe apresenta como um direito positivo, consuetudinário ou escrito, comum aos povos, que se regem por leis ou costumes, direito de cunho universal, que coexiste em cada povo com o seu direito nacional. Era o que ocorria em Roma, onde, ao lado do direito dos cives e das suas instituições particuláristas, havia o direito dos peregrini e as instituições de caráter universal, que ele legitimava, como expressão de um direito comum e geral.

Em outra passagem, Gaio reafirma o conceito da classificação dicotômica do direito e insiste na afirmação de ser a rátio naturalis o fundamento do direito geral, ao ensinar que "adquirimos o domínio de certas cousas pelo jus gentium, o qual, pela razão natural, se observa sempre entre todos os homens, e de outras pelo direito civil, isto é, pelo direito próprio de nossa cidade".

O paralelismo de ideias existente entre a ratio naturalis e o jus gentium, reitera-o o escritor em outras passagens, a propósito dos modos de aquisição da propriedade, diversos dos autorizados jure civile, como igualmente com relação às regras do jus personarum e ainda a respeito das obrigações

O jus gentium da concepção gaiana é tipicamente um direito positivo. Assim como há uma ratio civilis, que modifica , informa e condiciona o direito civil e a sua legislação, há uma ratio naturalis, que, sendo a fonte ou matriz do direito comum ao gênero humano, é a razão das instituições, que dele derivam, e constituem o direito das gentes, como ressalta dessa passagem já assinalada: Sed ea quidem societas, de qua loquimur, id est, quae consensu contrahitur nudo, juris gentium est, itaque inter omnes homines naturali ratione consistit.

Essaratio naturalis, ditada pela natureza, confunde-se, por um processo de equipolência vocabular, com o jus naturale e traça a sinonimia dêste com o ius gentium, na nomenclatura de Gaio.

Ojus natut'ale de Gaio nada tem de comum com aquele que se inscreve no texto no Digesto, e se atribui a Ulpiano. É  o mesmo direito positivo, a que se filiam instituições jurídicas, como a traditio, a occupatio; que tem o seu característico no contraste aberto com o jus civile, seu par na divisão dicotomica do direito privado; que é idêntico a ratio naturalis, fundamento
Veja-se a comprovação:

"65. Ergo ex his quae dixi1nusappuret quaedan naturali jure alienari, qualia sunt ea quae traditione alienantur; quaedam civili, nam mancipationis et jure cessionis et usucapionis jus proprium est civiumromanorum.
"66. Nec tamen ea tantu1n quae traditione nostra fiunt, natu1'ali nob.isratione adquiruntur, sed etiam quae occupando ideo adepti erimus, quia antea nullius essent; qualia ~unt O'mnia quae terra, mari, coelo capiuntur.

É pois o jus gentium, segundo Gaio, o único ramo do direito privado diverso do jus civile, na acepção de direito comum a todos os povos e a todos os homens, o mais antigo direito que nasceu com o próprio gênero humano.

3)      Classificação de Paulo. Segundo o fragmento inserto no Digesto, Paulo expõe que o direito se entende por vários todos em um deles, quando se chama direito aquele  que é sempre equitativo e bom, como é o direito natural (uno modo quum id, quod semper aequum ac bonum est, jus dicitur, itt est jus natura.le) ; em outro, o que em cada cidade é útil a lodos ou à maior parte, como é o direito civil ; afora outras aceitações, de sentido particularista.

Assim, para Paulo, o direito, na sua principal compreensão, se biparte em jus naturale e jus civile (32),- e de certa forma essa sub-divisão merece Iogar diverso da que se dá à de Ulpiano e de Gaio, embora se relacione com a dêste pelo critério da divisão dicotomica e com a daquele pelo conteúdo ideativo emprestado ao jus naturale.

 Vale a classificação, entretanto, pela sua significação didática e pela primazia, que concede ao jus naturale, ao valorizá-l0 com os atributos teóricos, que infor~am o conceito original do próprio direito, menos como direito positivo universalt direito de todos os povos, do que como expressão conceitual do fenômeno jurídico, na sua formulação abstrata.

Na verdade, se o direito (jus) é a arte do bom e equitativo (boni et aequi), como noção fundamental derivada - da justiça (jus est a justitia appelatum), segundo Celso e Ulpiano , o jus naturale -de Paulo copia-lhe o conceito ideológico, pois ele ,é identicamente aequum ac bonum. Dando assim o máximo relevo à compreensão do direito natural, nem por isso Paulo desconhece o jus gentium, como de igual não desconhecia Gaio, à sua época, o jus naturale, circunstancia que não obsta admitissem um e outro a divisão apenas dúplice do jus privatum.

É verdade que as idéias de Paulo, a êsse respeito, não exibem a mesma segurança de orientação, que se encontra em Gaio , e tudo nos levaria a relacioná-Ias de preferência com o pensamento de Ulpiano , conforme o Digesto o apresenta, não fôra o receio de colaborar na generalização dos pressupostos da - doutrina justineanea, preocupada em acentuar o conceitualismo naturalista do direito, herdado da filos6fia grega e valorizado pelas idéias cristãs, dominantes no mundo bisantino. Como veremos, a seu turno, os compiladores do Digesto deram franca -passagem às noções favoráveis à preeminência do jus naturale, e os indícios dessa preocupação provam que eles foram ao extremo das interpolações abertas, como se deduz da análise sutil dos intérpretes  ou da superposição dos textos originais com as aqueles transcritos nos fragmentosdo Corpus Juris, conforme veremos adiante.

Na àntitese da doutrina de Paulo, ao jus civile opõe-se indistintamente o jus gentium, o jus naturale, a aequitas ou a ratio naturalis, sob noções nem sempre idênticas ou precisas, más em qualquer caso assemelhadas.

Assim, quando, por direito civil, jure civile, faltem os filhos, que deixaram de ser heredes sui, por via da capitis deminutio, o pretor, por equidade, p'topter aequitatem, pode extinguir eorum capitis deminutionem.

Quando falte a actio pluviae arcendae, opina caber contra o vizinho a actio utilis ou o interdictus, para reparar o dique in agro ejus: isto é o que sugere a equidade, ainda que careça-, mos de direito (positivo, ou civil), haec aequitas suggerit, etsi jure defficiamur.

Tratando da exceptio doli m.ali, esclarece que o pretor a instituiu para que a ninguém aproveite contra naturalem aequitatem o seu pr6priodolo, per occasionem juris civilis.

 A actio in rem compete a quem adquiriu o -domínio au.t jure gentium aut jure civili.

A razão natural, quase como uma lei tácita, assegura aos descendentes a herança dos ascendentes, ratio naturalis, quasi lex quaedam tacita, liberis parentum ' hereditatem addiceret J. por causa disso, também em direito civil, deu-se-lhe o nome de herdeiros seus, propter quod et 'in jure civili suo.rum heredum nomen iis indictum est.

 Se cada qual pode vender as suas cousas, nula, porém é a venda daquelas, earum nula venditio est, as quais natura vez gentium vel mores civitatis retiraram do comércio.
 Na sua própria intercorrelação, a noção do jus naturale e do jus gentium mantém essa mesma indeterminada assemelhação, na doutrina de Paulo.
A locatio conductio, como seja uma instituição natural e de todos os povos, cum naturalis sit et omnium gentium, contrae-se pelo consentimento e não por palavras, como a emptio venditio, e esta, de sua vez; -é do direito das gentes, est autem emptio juris gentium.
 Aquele que é obrigado a dar pelo jus gentium, deve por natureza, is natura debet, quem jure gentium dare oportet (46), e na esteira de outras citações, vemos o 'jus gentium ser invocado para -impedir ~ alienação das praias, litora quae fundo vendito conjuncta sunt. .. non computantur, porque não são de ninguém, quia nullius sunt, pois pelo direito das gentes estão ao dispor de todos, sed jure gentium omnibus vacant (47); vemo-lo ainda proclamado como fundamento do casamento incestuoso, jure gentium incestu1n committit quem casar-se com mulher no grau dos ascendentes ou descendentes, qui ex gradu adsceridentium veZ descendentium uxorem duxerit, ainda que em matéria de casamento anote-se ser de observar-se o direito natural, in contrahendis mat'rimoniis naturale jus. .. ins piciendum est.
 Não se pode negar que os compiladores bizantinos tiveram a preocupação de realçar a importância do jus naturale, no plano das noções teóricas compendiadas, tanto mais que a concepção naturalista do, direito afinava de perto com as ideias da filosofia cristã, e essa técnica, no processo da ordenação do Corpus Juris, não podia deixar de contribuir para agravar a imprecisão- de conceitos, em que vacilavam os juristas clássicos, em suas obras originais.
Acresce que a perspicácia dos modernos estudiosos tem posto em dúvida a autenticidade de textos decisivos do Digesto, no empenho de distinguir o pensamento do direito clássico das alterações decorrentes da influência heleno-bizantina, nem sempre bem assimiladas ou compreendidas pelos juristas da decadência.
 Manda a lógica que se entendessem idênticas as noções do jus naturale e do jus gentium, pois que são ambos expressão do mesmo jus commune, como ensina Ulpiano , e têm como fonte a mesma naturalis ratio, conforme vimos em tantos textos citados.
 Mas o próprio Ulpiano expõe doutrina diversa, e a análise das razões, que, são invocadas para a explicação do fato, apresenta-se tocada de invencíveis dificuldades, fundadas inicialmente na ausência das obras originais do escritor, em que este tivesse versado o assunto - as suas Institutiones ou os libri ad Sabinum - que se perderam na maior parte, circunstância que deixa sem comprovação os fragmentos do Digesto, em favor ou desfavor da sua genuidade. Há de pairar sempre uma interrogação sobre esse obscuro capítulo do direito romano a mesma que entenebrece a compreensão das Institutas da coleção justinianea, nos passos que se referem exatamente a esse assunto, e onde, por motivos não esclarecidos, os seus redatores perpetuaram, num só corpo de doutrina, as contradições teórico-didáticas, que no Digesto correm por conta dos juristas clássicos, fragmentariamente citados.
A exposição das Institutas é, na verdade, patentemente defeituosa.
 No Cap. de Just. et ere assenta que o jus privatum é tripartido, constituindo-se de preceitos do jus naturale, gentium e civile. No Capo seguinte, De Jure Nat. Gent. et Civile, contradiz-se, ao declarar que o direito se divide assim: civile vel gentium.
 Nesse mesmo capítulo articula o conceito de jus naturale, conforme a lição de Ulpiano e o do jus gentium e do jus C'ivile,conforme a de Paulo . Adita, após, um novo conceito de jus gentium, que recorda o de Ulpiano, com o visível intuito de estabelecer a antinomia entre o jus gentium e o ius naturale, a propósito da liberdade e da escravidão, dando assim curso à mesma ideia, que reedita, em seguida, já agora em cópia do fragmento de Ulpiano . Logo adiante ,denunciando os pressupostos doutrinários do pensamento dominante no meio e no momento ,sob a influência das preocupações religiosas do cristianismo, em plena ascensão vitoriosa, renova outra definição de direito natural, agora identificada com a noção do jus gentíum, para, no ensejo, declará-lo constituído pela Divina Providência, donde os característicos da sua perenidade e imutabilidade. E, enfim, enredando-se na complexidade do tema, de que mal se assenhoreara, desce à simples equiparação de um e outro dêss.es direitos, pelo processo primário de sua sinonimização vocabular.
 O emaranhado dessas noções trai a insegurança da doutrina compendiada, e essa circunstância contribui para fortalecer a convicção de que muitas das ideias referentes ao jus naturale foram introduzidas nos fragmentos do Digesto pela mão dos compiladores bizantinos, com violência ao sistema de suas concepções originais e consequente desarmonia do seu conteúdo doutrinário.
Se essa afirmativa funda-se nas sutilezas de uma exegese, que pode ser posta em dúvida, há entretanto outros elementos comprobatórios da alteração do pensamento original dos escritores clássicos, como os que decorrem do confronto do texto das Institutas de Gaio como do Digesto e das Institutas de Justiniano, ou destes, entre si.
Senão, vejamos:
 I-Gaio, II, 69:
Ea quoque, quae e~ hostibus capiuntu1"NATURALI RATIONE nostra fiunt.
 D. Gáio, 5 § 7 (41.1):
Item quae ex hostibus capiuntur, JURE GENTIUM statim capientium fiunt.
I-17 (2.1):
 Item ea quae ex hostibus capimus, JURE GENTIUM statim nostra fiunt.
 A substituição impôs-se, no caso, porque na doutrina dos bizantinos os prisioneiros eram submetidos à escravidão, conb'a naturam - D. 4 (1. 5) ; I. 2 (1. 2), e não ratione naturali. Sendo a servitus uma constitutio juris gentium, contrária, ao jus naturale, repugnava-lhes a concepção do texto gaiano.
Outro cotejo elucidativo é o do texto sôbre a aquisição do domínio das cousas e, de igual, sôbre qual fôsse o mais antigo direito.
Anotemos:
 D. Gaio, 1(41.1) :
 ... quarumdam rerurn dominiutn nanciscimur JURE GENTI UM, quod ratione naturali inter omnes hornines 1Jeraeque servatur. . .
1.      11 (2.1):

 ... quarundam enim rerum dominium nanciscimur JURE NATURALI, quod sicut diximus àppellatur jus gentium...
Gaio, ibid.: Et quia antiquius JUS GENTIUM cum ipso genere hun~ano proditum est, opus est ut de hoc prius referendum sit.
 I. ibid.:
Commodius est itaque a letustiore jus incipere. Palarfl, elt autem vetustius esse NATURALE JUS, quod cum ipso genere hutnano rerum natitra 1Jrodidit.
 É visível o intuito de acomodação do texto gaiano aos propósitos doutrinários do pensamento dos compiladores: 1) o direito deduzido da ratio naturalis não é o jus gentium, mas o jus naturale, que também se chama. .. jus gentium; 2) o direito mais antigo, que nasceu com o próprio gênero humano, não é o jus gentium, mas o jus naturale, que a natureza das cousas gerou com o gênero humano.
 Fundados nos pressupostos de uma propositada alteração da verdadeira doutrina clássica, escritores de maior valia carregam à conta dos redatores do Corpus Juris a divisão tripartida do direito, feita para enobrecer o jus naturale, direito diverso do jus gentium, ensinado pela natureza aos homens e aos animais, o qual, fugindo aos contornos 'especulativos de sua teorização, se entre demonstra sob a forma de preceitos integrantes do jus privatum, do direito positivo, na conceituação do texto ulpianeo.
 É inegável que, sob inúmeros aspectos, o jus naturale e o jus gentium se confundem no plano especulativo, e as fontes romanas testemunham essa indeterminação de conceitos, no processo de filiação das normas jurídicas às matrizes, de que elas se originam, sempre que não provenham do jus civile.
Assim, para que os dois direitos se distinguissem, e justificasse a tricotomia duvidosa, três princípios foram erigidos e levados à responsabilidade, da influência pós-clássica, obediente às ideias dos filósofos gregos e aos novos princípios cristãos, que iriam ser abraçados pelos escolásticos: à noção de um direito natural, próprio a todos os seres vivos, a ideia da imutabilidade dos direitos naturais, decorrentes da inteligência divina e o princípio da igualdade de todos os homens, diante do direito natural.
 Por via deste último postulado, o jus naturale contradiz o jus gentium . Por efeito do segundo, essa contradição se acentua, em face da transitoriedade do direito positivo. Enfim, por via do primeiro, o jus naturale diverge do jus gentium, direito deduzido da natureza do homem, para alcançar o conceito de um direito ideal, fundado na ordo rerum ou na rerum natura, sobre excedente da natureza humana.
A ideia de uma lei natural, que sujeita todos os seres vivos, foi conhecida dos filósofos gregos e dos retóricos romanos: era menos uma noção jurídica que um conceito especulativo, e nele insistiram muitos partidários do direito natural, sendo de notar-se que São Tomaz de Aquino funda diretamente no questionado fragmento de Ulpiano sobre o jus naturale ("ut jurisconsultus dicit") a sua doutrina: Absolute autem appreendere aliquid: non solum convenit homini, sed etiam aliis ariimalibus. Et ideo jus quod dicitur naturale. .. commune est nobis et aliis anÜnalibus.
 Certo, a conceituação ulpianea do jus naturale, incluída no texto do Corpus Juris, defensável, para uns, como ideia ético-jurídica, combatida por outros, ou pela impropriedade dos seus termos, como faz Savigny ou pela infelicidade da expressão, conforme diz Alexandre Correia , ainda que ambos a justifiquem, significa para Albertario uma stoltezza e para Perozzi um concetto pueril ed inutile.

Referência:
CARTAXO, Ernani Guarita. Conceito Clássico e Pós-Clássico do Jus Naturale e do Jus Gentium. Disponível em: <http://ojs.c3sl.ufpr.br/ojs/index.php/direito/article/download/6170/4401> ou clique aqui para acessar em Cache.

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