quinta-feira, 25 de junho de 2015

Os Três Pilares do Código Civil de 1916

Enviado por: Roberta Pacheco Minossi
Autoria de: Felipe Camilo Dall’ Alba

A família, a propriedade e o contrato, na pena de JEAN CARBONNIER, são os pilares que animam o sistema jurídico. Além do que, os três pilares têm o condão de guarnecer qualquer sistema econômico e político, por mais diferentes que sejam. 

Dessa feita com FACHIN é correto afirmar que
os três pilares fundamentais, cujos vértices se assenta a estrutura do sistema privado clássico, encontram-se na alça dessa mira: o contrato, como expressão mais acabada da suposta autonomia da vontade; a família, como organização social essencial à base do sistema, e os modos de apropriação, nomeadamente a posse e a propriedade, como títulos explicativos da relação entre as pessoas sobre as coisas.

CLÓVIS DO COUTO E SILVA, ao falar da nossa legislação, explica que “a noção de família, propriedade e contrato são ainda as da última fase do direito comum, pois o CC germânico, publicado em 1900, não foi considerado durante o período de tramitação do CC, e poderia ter sido”. Além do que, o Código era conservador tanto nas “relações de ordem patrimonial, contratual e familiar, fiel ao contexto histórico e à história dos valores dominantes”. Some-se, ainda, o fato de o Código Civil, no que pese ter feito uso da “experiência de outros povos”, deixou-se amarrar pela “filosofia e os sentimentos da classe senhoril”, que influenciou a “propriedade, a família, a herança e a produção (contrato de trabalho)”.

Porém, após a Primeira Guerra Mundial o Código Civil retalhou-se, pois passou-se a editar normas especiais para tratar especificamente de certas relações jurídicas (legislação trabalhista, estatuto da terra e outras), deixando de ser o código “um texto único no qual estavam reunidas e sistematizadas as regras gerais do direito comum na órbita privada”.  Ocorria, então, um verdadeiro processo de renovação.

Nessa esteira, na linha da história, é inegável que o direito de família, de propriedade e do contrato, fixados no Código de 1916, foram transformando-se com o decorrer nos anos. Mas, com a entrada em vigor da Constituição de 1988, obrigatoriamente tiveram uma nova leitura, já que o Código Civil cedeu seu espaço de centro do sistema para a Constituição, pois como leciona RENAN LOTUFO: “a constituição, então, é o foco de iluminação, é quem informa e dá os valores ao Direito Civil”. Ressalta páginas à frente o susto da doutrina e da jurisprudência “[...] por passar a mesma (a Constituição) a disciplinar diretamente matérias que até então eram de exclusivismo tratamento pela lei ordinária, muito particularmente por tratar de matéria, até então, objeto de regulamentação exclusiva do Código Civil”. A Constituição de 1988 não contém somente normas materialmente constitucionais como forma de estado, sistema de governo e etc., mas contém institutos tipicamente de direito privado como a família e seus consectários, dando-se a constitucionalização do direito civil.

Dessa feita, como leciona MARIA AMÁLIA DIAS DE MORAES:

[...] a família, o casamento, o pátrio poder, o contrato e a empresa, a propriedade, a responsabilidade civil, o direito do autor, apenas para exemplificar, recebem ou podem receber uma nova moldura, que ora restringe, ora amplia ou faz mais compreensivo o conceito original.

Porém, mais do que isso, a Constituição como bem diz LUIZ RENATO, é a “fonte dos valores que informam as regras de direito privado (para além do fato de haver regras desta natureza esculpidas no próprio texto constitucional)”.

Assim, o trabalho daqui por diante será dedicado a uma análise dos três pilares fixados no Código de 1916, num olhar pré-Constituição e pós-Constituição.

A) O primeiro pilar: a família

Disciplinar o direito de família não é tarefa fácil, pois a instituição família encontra-se em contínua transformação, perpassando da família tradicional, que tinha como cabeça do casal o marido, à família da gerência coletiva, ou seja, da igualdade entre homens e mulheres.

Mas, no que pese a repulsa causada, como se verá a seguir, pelas discriminações odiosas entre o homem e a mulher expressadas no Código revogado, a família de 1916 seria praticamente inconcebível hoje, e a de hoje, por certo, na mesma quadra, inconcebível em 1916. O homem verdadeiramente é um animal do seu tempo.

A1) A Família no Código de Beviláqua

“A família do Código Civil de 1916 era uma família transpessoal, hierarquizada e patriarcal.” Nesta senda, houve a incorporação de princípios morais, particularmente no direito de família, dando-lhes conteúdo jurídico. 

Pode-se dizer, com isso, que o Código mantém-se fiel à tradição e ao estado social, conservando a indissolubilidade do matrimônio, o regime de comunhão universal e a legítima. 

A supremacia do homem como cabeça do casal, para o Código de Beviláqua, pode ser sentida em diversos dispositivos. Pelo art. 233, ao marido incumbia a chefia da sociedade conjugal, tendo a mulher função de colaboração do marido no exercício dos encargos da família, cumprido a ela velar pela direção material e moral (art. 240). Segundo prescreve ORLANDO GOMES, o casamento do menor de 21 anos necessitava do consentimento de ambos os pais, mas em havendo discordância prevalecia a vontade paterna. Posição privilegiada, por isso, da figura masculina na sociedade conjugal. 

Além do que, uma das regras de maior discriminação, talvez a pior, era a que considerava a mulher como relativamente incapaz (art. 6°, II), dando-se margem ao entendimento de que o intuito do legislador era deixar a mulher sempre sob o comando masculino. De modo que, muitas mulheres sequer chegaram a ser capazes durante toda sua vida, pois como poderiam casar-se a partir dos dezesseis anos e só adquiririam a capacidade aos 21 anos, aquelas que casaram antes dessa idade não chegaram a possuir a capacidade plena.

Porém, doutrina CLÓVIS DO COUTO E SILVA que “a família era eminentemente patriarcal; o divórcio não era admitido, não tanto por influência da igreja católica, mas sobretudo por força das idéias de Augusto Conte”. 

Quanto à filiação, havia diferenciação entre filhos legítimos e ilegítimos e entre naturais e adotivos. Por exemplo, em texto evidentemente patrimonialista, quando o adotante tivesse filhos legítimos, legitimados ou reconhecidos, a relação de adoção não envolve a de sucessão hereditária (art. 377). Por sua vez, o art. 359 dispunha que o filho ilegítimo, reconhecido por um dos cônjuges, não poderia residir no lar conjugal sem o consentimento do outro.

Contudo, como já referido diversas vezes, essa família não resistiu por muito tempo, principalmente a questão da desigualdade entre homens e mulheres, sendo que cada dogma foi desmoronando, até a chegada da Constituição de 1988.

A2) A Constituição Federal e a Família do Código de Beviláqua

A Constituição de 1988 deu um novo enfoque aos institutos do direito de família, o que já vinha ocorrendo com o passar dos anos. A Lei 4.212/1962 deu à mulher casada a capacidade; a Lei 6.515/77 permitiu o divórcio, proibição contida no Código Civil regovado, permissão referenda, como não podia deixar de ser, pela Constituição (art. 226, § 6º). Não sem falar que constou expressamente na Carta de princípios não só a igualdade entre homens e mulheres, art. 5º, inciso I, como também que os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente por ambos (art. 226, § 5º).

Registra EDUARDO SILVA que “a família despe-se da sua condição de unidade econômica e passa a ser uma unidade afetiva, uma comunidade de afetos, relações e aspirações solidárias”. Nessa esteira, a família torna-se o veículo adequado para a proteção da dignidade da pessoa humana, com o “reconhecimento do primado da pessoa” em que deve haver respeito entre os cônjuges, e destes a seus filhos. 

Nessa quadra, a união estável teve reconhecimento constitucional (art. 226, § 3º da CF), vindo ao encontro da realidade social e de encontro à tradição de nosso país, pois como disse THEODORO JUNIOR: “[...] desde a Constituição Republicana de 1891, a proteção constitucional era destinada à família legítima. O concubinato, porém, sempre se apresentou como uma realidade inegável, à margem do casamento civil”. 

Não pode ser olvidado, entretanto, que a Carta não reconhece as uniões entre pessoas do mesmo sexo, já que há previsão expressa de que o reconhecimento da união estável pressupõe um homem e uma mulher (art. 226, § 3°). Além disso, a sociedade brasileira não admitiria essas uniões, mas quem sabe no futuro, com o desenvolvimento social, isso não passe a ser aceito, aí sim o direito poria o seu dedo consolidador, não antes como pretendem alguns, pois, como disse CARBONIER, “las leys proporcionan muchas más milésimas, pero la família no se transforma simplesmente a golpe de leyes”. 

Quanto aos filhos, a Carta Política deu-lhes os mesmos direitos havidos ou não da relação de casamento ou por adoção, proibindo quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação (art. 227, § 6º). Por isso, hoje, há plena igualdade entre os filhos, acabando-se com as discriminações antes existentes.

Assim sendo, a família “[...] se revela sob forma plural – coloca-se como direito vivido, e não mais como direito imposto e imaginário” 

B) Os últimos dois pilares: propriedade e contrato

O Código outorgou aos institutos da propriedade e do contrato, como não poderia deixar de ser, uma fisionomia própria, sendo o primeiro absoluto e o segundo liberal. Porém, com o passar do tempo, com a evolução da sociedade, da mesma forma que o direito de família, esses direitos foram adquirindo outra dimensão, sendo certo que a codificação resistiu quase um século, permitindo sua adaptação social.

Assim, começar-se-á abordando a propriedade e o contrato com o conteúdo oitocentista e, após, sem passar detalhadamente por toda a legislação que mediou o período de 1916 a 1988, far-se-á a análise Constitucional, relendo-se o antigo Código.

B1) Propriedade e contrato no Código de Beviláqua

Verbera JEAN CARBONNIER que “la doctrina liberal Del siglo XIX difinìa la propiedad com um derecho absoluto, exclusivo e perpetuo”.  Segundo FACHIN, “a disciplina jurídica da propriedade nasce do art. 554, do Código Civil francês de 1804, segundo o qual o direito de propriedade é um direto absoluto. Era exercido de maneira mais ampla possível”. 

Ressalte-se que a história jurídica da propriedade brasileira não registrou o sistema feudal, pois a propriedade das terras pertencia à Coroa portuguesa, a qual, nas palavras de LAURA BECK VARELA,

mantinha os particulares em uma relação de concessão, de natureza jurídica administrativa. Trata-se das sesmarias, instituto símbolo da história territorial brasileira. O ponto de chegada, contudo será o mesmo: A propriedade, conceito unitário, abstrato, absoluto – variação do modelo napoleônico- pandectista que se corporifica no art. 524 do Código Civil de 1916. 

Porém, no que pese o caráter absoluto da propriedade, o Código Civil revogado previa, no campo destinado ao direito de vizinhança, algumas limitações a esse direito, a começar que o proprietário, ou inquilino de um prédio teria o direito de impedir que o mau uso da propriedade vizinha pudesse prejudicar a segurança, o sossego e a saúde dos que o habitam (art. 554). Além do que, o dono do prédio rústico, ou urbano, que se achasse encravado em outro, sem saída pela via pública, fonte ou porto, teria o direito de reclamar do vizinho que lhe deixe passagem forçada (art. 559). Outro artigo, cujo conteúdo implica limitação ao direito de propriedade, é o 572, pois o proprietário poderia levantar em seu terreno as construções que lhe aprouvesse, salvo direito dos vizinhos e os regulamentos administrativos.

No que diz respeito ao contrato, na doutrina liberal do século XIX, este tinha, como direção, o dogma da autonomia da vontade, sem limites. As partes poderiam livremente estipular o conteúdo das cláusulas contratuais, que o tornava obrigatório. Não se levava em conta o desequilíbrio na formação ou na execução do contrato. Como ROSA MARIA DE CAMPOS ARANOVICH, pode-se dizer que “as relações privadas e especialmente obrigacionais assentam-se, como já referido, no princípio da autonomia da vontade. Este, de acordo com Carlos Alberto Mota Pinto, consiste no poder reconhecido aos particulares de auto-regulamentação de seus interesses, de autogoverno de sua esfera jurídica”.


REFERÊNCIA

ALBA, Felipe Camilo Dall’. Os três pilares do Código Civil de 1916: a família, a propriedade e o contrato. Revista Páginas de Direito. Porto Alegre. Ano 4, nº 189. 20.9.2004. Disponível em: <http://www.tex.pro.br/home/artigos/109-artigos-set-2004/5147-os-tres-pilares-do-codigo-civil-de-1916-a-familia-a-propriedade-e-o-contrato>.

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