sexta-feira, 19 de junho de 2015

Comparação entre o Digesto e a legislação civil e processual civil brasileira atual

Enviado por: Sofia Heimerdinger Gonzaga 
Autoria de: José Eduardo Figueiredo

Neste tópico serão apresentadas algumas semelhanças entre as normas jurídicas previstas no Digesto e a legislação brasileira atual, demonstrando a grande herança romana na formação do direito contemporâneo. Claro que não é possível esgotar o assunto em tão breve trabalho científico, mas serve para se ter uma breve noção da influência romana na formação da ciência jurídica brasileira.

Leis gerais e especiais (Papiniano)

Em mandamento atribuído a Papiniano, está previsto no Digesto (D. 50.17.80; 33 quaestionum) o seguinte: “In toto iure generi per speciem derogatur et illud potissimum habetur, quod ad speciem derectum est”. Por uma tradução bastante sintética, trata-se da regra geral de direito que o específico derroga o genérico. Significa, pois, que “não é toda a lei antiga que deixa de prevalecer, mas somente aquilo que se mostra incompatível com a lei nova[1]”.

A regra prevalece até os dias atuais na legislação brasileira, vide o artigo 2º, §2º da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro (Decreto-lei nº 4.657/42):

Art. 2o Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue.

[...]

§ 2o A lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior.

Dessa maneira, assim como já concluído pelos romanos, a disposição especial disciplinará casos especiais, sem que colida com a norma geral, podendo harmonicamente e de forma simultânea vigorar. Caberá ao intérprete verificar no caso concreto qual delas será aplicada, isto é, se ele se depara com um dos casos especiais ou geral.

Critérios de satisfação do débito (Gaio e Ulpiano)

Quanto à satisfação do débito, já lecionava Gaio (Digesto, 27, 10, 5):

Curator ex senatus consulto constituitur, cum clara persona, veluti senatoris vel uxoris eius, in ea causa sit, ut eius bona venire debeant: nam ut honestius ex bonis eius quantum potest creditoribus solveretur, curator constituitur distrahendorum bonorum gratia vel a praetore vel in provinciis a praeside.

A regra traz a ideia de que só deverão ser vendidos os bens do executado que se mostrarem suficientes para a satisfação dos seus débitos. É o princípio da satisfatividade, informativo da tutela jurisdicional executiva previsto no artigo 659 do Código de Processo Civil:

Art. 659.  A penhora deverá incidir em tantos bens quantos bastem para o pagamento do principal atualizado, juros, custas e honorários advocatícios.

Outro critério presente no Digesto acerca de critérios para satisfação do débito é a ordem na venda de bens penhorados, em enunciado atribuído à Ulpiano no livro 42, 1, 15, 2. Em síntese, estabelece que sejam vendidas em primeiro lugar as coisas móveis e os animais. Se não bastarem para a satisfação do débito, serão vendidos os bens imóveis e, por fim, os direitos.

Trata-se de ordem bastante semelhante à existente hoje no artigo 655 do Código de Processo Civil, verbis:

Art. 655.  A penhora observará, preferencialmente, a seguinte ordem:

I - dinheiro, em espécie ou em depósito ou aplicação em instituição financeira;
II - veículos de via terrestre;
III - bens móveis em geral;
IV - bens imóveis;
V - navios e aeronaves;
VI - ações e quotas de sociedades empresárias;
VII - percentual do faturamento de empresa devedora;
VIII - pedras e metais preciosos;
IX - títulos da dívida pública da União, Estados e Distrito Federal com cotação em mercado;
X - títulos e valores mobiliários com cotação em mercado;
XI - outros direitos.

Verifica-se que a preocupação com uma ordem menos gravosa para o devedor e que satisfaça devidamente os interesses do credor existia desde a época dos romanos, não sendo, pois, novidade do mundo jurídico contemporâneo.

Litispendência e Coisa julgada (Ulpiano)

Os institutos da litispendência e da coisa julgada também derivam do direito romano. No Digesto, em seu livro 50, há dois enunciados originários de Ulpiano que comprovam a preocupação dos romanos com as ações repetidas, estejam elas em andamento ou findas. No caso da litispendência: “1. Quotiens concurrunt plures actiones eiusdem rei nomine, una quis experiri debet[2]” (D. 50, 17, 43). Já no caso da coisa julgada: “Res iudicata pro veritate accipitur[3]” (D. 50, 17, 207).

Os institutos se mantêm íntegros na legislação brasileira atual, conforme se nota pela redação do artigo 301, §§ 1º, 2º e 3º do Código de Processo Civil:

Art. 301, § 1o Verifica-se a litispendência ou a coisa julgada, quando se reproduz ação anteriormente ajuizada.
§ 2o Uma ação é idêntica à outra quando tem as mesmas partes, a mesma causa de pedir e o mesmo pedido.
§ 3o Há litispendência, quando se repete ação, que está em curso; há coisa julgada, quando se repete ação que já foi decidida por sentença, de que não caiba recurso.

Citação e domicílio (Paulo e Gaio)

O doutrinador Luis Carlos de Azevedo identifica nas passagens do Digesto questões acerca da citação e do domicílio do réu:

Do mesmo modo, quanto ao direito à intimidade, ao resguardo do domicílio: Gaio já acentuara, “ninguém pode ser citado dentro de sua própria casa, porque esta é o mais seguro refúgio e asilo de cada um: e aquele que nela penetra, para citar, estará violando-a” (D. 2, 4, 18, ad. leg. XII, Tab.).

O texto de Paulo reafirma a prerrogativa: poderá ser citado, se vier até a soleira da porta e se com a convocação eventualmente consentir: mas, na casa, ninguém poderá entrar e tirá-lo de lá, à força: “tamen de domo sua memo extrahi debet” (D. 2, 4, 21; 1, ad. edictum e 50, 17, 103)[4].

Entendimento semelhante está presente pela leitura sistemática do artigo 5º, XI da Constituição Federal e dos artigos 227 e 228 do Código de Processo Civil:

Art. 5º, XI - a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial;
Art. 227. Quando, por três vezes, o oficial de justiça houver procurado o réu em seu domicílio ou residência, sem o encontrar, deverá, havendo suspeita de ocultação, intimar a qualquer pessoa da família, ou em sua falta a qualquer vizinho, que, no dia imediato, voltará, a fim de efetuar a citação, na hora que designar.
Art. 228. No dia e hora designados, o oficial de justiça, independentemente de novo despacho, comparecerá ao domicílio ou residência do citando, a fim de realizar a diligência.
§ 1o Se o citando não estiver presente, o oficial de justiça procurará informar-se das razões da ausência, dando por feita a citação, ainda que o citando se tenha ocultado em outra comarca.

Institutas

Justiniano, após a elaboração do Digesto, selecionou os compiladores Triboniano, Doroteu e Teófilo para organizar um manual introdutório às normas inclusas no Digesto. As Institutas foram publicadas um mês antes do Digesto, em 21 de novembro de 533, para que fosse possível o estudo prévio das normas que em breve entrariam em vigor. Entrou em vigor no mesmo dia do Digesto, ou seja, 30 de dezembro de 533.

Sendo destinada ao ensino, as Institutas têm como característica o ponto de vista teórico, expondo noções gerais, definições e classificações dos dispositivos presentes no Digesto.

Comparação entre as Institutas e a legislação civil brasileira atual

Neste tópico serão apresentadas algumas semelhanças entre as normas jurídicas previstas nas Institutas – ainda que se trate, como explicado alhures, de mero manual introdutório ao Digesto – e a legislação brasileira atual, demonstrando a grande herança romana na formação do direito contemporâneo, sem a pretensão de esgotar o assunto.

Herança da filha e da esposa

Na legislação civil atual, a filha, independentemente de já ter se casado ou não, e a esposa são sucessoras legítimas de seu pai e marido respectivamente (artigo 1.829, I e II do Código Civil). No entanto, no direito romano a regra não era a mesma, como se depreende destes excertos da obra de Fustel de Coulanges:

Gaio e as Institutas de Justiniano relatam o fato de a filha só ser considerada como herdeira de seu pai se lhe estivesse subordinada na ocasião da morte; mas se casasse segundo os ritos religiosos, já não estaria mais sob a autoridade do pai.

[...]

As Institutas de Justiniano recordam o velho princípio então caído em desuso, mas não esquecido, que prescrevia que a herança passasse apenas de um varão a outro. Sem dúvida, só em respeito a essa regra é que a mulher, em direito civil, não podia jamais ser instituída herdeira[5].

Nota-se que mesmo com o ativismo da imperatriz Teodora pelo reconhecimento de direitos das mulheres em pé de igualdade com os homens[6], ainda assim a mulher não gozava de tais direitos quando se tratava da questão hereditária.

Reforma no Código de Justiniano

Como já dito anteriormente, com a publicação do Digesto, muitas contradições surgiram e as normas tiveram que ser revisadas. Por isso, já no ano de 534, foi editada uma segunda versão do Código (Codex repetitae praelectionis). Uma comissão de cinco membros ficou incumbida da tarefa de sistematizar e adequar o Código de Justiniano à nova realidade do Digesto.

O novo Código é dividido em 12 livros, com subdivisões em títulos. Assim como no Digesto, estão presentes as interpolações. Evidenciando a preocupação de Justiniano com a religião como meio de uniformização do império, há logo no início uma invocação de Cristo, seguindo-se para os livros que, em linhas gerais, dividem-se em matérias. O Livro I trata das fontes do direito, ao direito de asilo e às funções dos diversos agentes imperiais. O Livro II trata do processo. Os Livros III e VIII tratam basicamente de regras de direito privado. O Livro IX de normas de Direito Penal. Os Livros X a XII de regras de direito administrativo e fiscal.

Comparação entre o Código de Justiniano e a legislação civil brasileira atual

Novamente, sem a pretensão de esgotar o assunto, serão apresentadas algumas semelhanças entre as normas jurídicas do Codex e a legislação brasileira atual.

A boa-fé e a cobrança indevida de dívida

O instituto da boa-fé já era previsto no direito romano, como assim já asseverava Gaio em enunciado incluído no Digesto[7] e repetido no Codex. Assim, aquele que violava este preceito, era punido com severidade caso exigisse quantia superior à devida, perdendo o credor de má-fé tanto o excesso exigido como todo o crédito (C. 3, 10, 3).

Referidos conceitos são bastante semelhantes aos existentes nos artigos 422 e 940 do Código Civil:

Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.
Art. 940. Aquele que demandar por dívida já paga, no todo ou em parte, sem ressalvar as quantias recebidas ou pedir mais do que for devido, ficará obrigado a pagar ao devedor, no primeiro caso, o dobro do que houver cobrado e, no segundo, o equivalente do que dele exigir, salvo se houver prescrição.

E no artigo 42 do Código de Defesa do Consumidor:

Art. 42. Na cobrança de débitos, o consumidor inadimplente não será exposto a ridículo, nem será submetido a qualquer tipo de constrangimento ou ameaça.Parágrafo único. O consumidor cobrado em quantia indevida tem direito à repetição do indébito, por valor igual ao dobro do que pagou em excesso, acrescido de correção monetária e juros legais, salvo hipótese de engano justificável.

NOTAS
[1] AZEVEDO, Luis Carlos de. Introdução à história do Direito. 3ª ed. rev. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 71-72.
[2] Tradução livre: “quando concorrem várias ações pela mesma causa, deve-se exercitar apenas uma delas”.
[3] Tradução livre: “coisa julgada é verdade aceita e não mais possível de ser modificada”.
[4] AZEVEDO, Luis Carlos de. Introdução à história do Direito. 3ª ed. rev. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 73.
[5] COULANGES, Fustel de. A Cidade Antiga. São Paulo: Martin Claret, 2005. p. 81-82.
[6] Fatos já trabalhados no subitem 2.1 supra.
[7] Bona fides non patitur, ut bis idem exigatur (D. 50, 17, 57 Lib. Octavo Decimi ad Edictum Provinciale).

REFERÊNCIA

FIGUEIREDO, José Eduardo. Corpus Juris Civilis: Justiniano e o Direito brasileiro. In.: Jus Navigandi. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/22969/corpus-juris-civilis-justiniano-e-o-direito-brasileiro>.

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