Enviado por: Pedro Acosta de Oliveira
Autoria de: Arnaldo Sampaio de Morais Godoy
Autoria de: Arnaldo Sampaio de Morais Godoy
José Carlos Moreira Alves notabiliza-se na história das ideias do direito brasileiro por sua expressiva e criativa atuação como ministro do Supremo Tribunal Federal (1975-2003), por sua também significativa atuação como Procurador-Geral da República (1972-1975), por seu profundo conhecimento de direito privado, bem como por sua admirável qualidade de romanista.
Essa última característica é a que mais me cativa; há hoje poucos romanistas. O direito romano foi pasteurizado em manuais de história do direito, que em duzentas páginas transitam do Código de Hamurabi para a carnificina da Revolução Francesa, muito elogiada, como se a guilhotina fosse a toque de Midas para todas as liberdades e garantias, anunciadas, mas não efetivamente por todos vividas.
Moreira Alves é autor de portentoso livro de Direito Romano [1], bem como de uma série de estudos do mesmo assunto, publicado pelo Senado Federal [2], com ilustrativo estudo introdutório de Ronaldo Poletti, também romanista muito versado [3]. É nesse último livro que encontro a tese de livre-docência de Moreira Alves, defendida em 1961, em concurso disputadíssimo, cujas traços centrais Ronaldo Poletti retomou, no estudo introdutório acima mencionado. Fora um concurso memorável. Moreira Alves, no entanto (ficara em segundo lugar, o vencedor fora Alexandre de Castro Correia), retornou para São Paulo, onde venceu certame para a cátedra de Direito Civil, em 1968.
A tese que Moreira Alves apresentou à Egrégia Congregação da então Faculdade de Direito da Universidade do Brasil intitulou-se de Os efeitos da boa-fé no casamento nulo segundo o Direito Romano. Moreira Alves explorou o “vasto campo de controvérsias” que o casamento suscitava no direito romano, segundo observou logo no início desse erudito texto. A tese foi concebida a partir de fontes normativas primárias (Código Teodosiano, Fragmenta Quae Diquntur Vaticana, Gaio, as Institutas, o Digesto, as Novelas), de autores centrais no cânon literário clássico (Cícero, Juvenal, Suetônio, Tácito, Tito Lívio), a par dos mais expressivos romanistas (Savigny, Biondi, Makeldey, Mommsen, Pothier).
Moreira Alves enfrentou o problema da existência (ou não) de um casamento putativo no direito romano. Com tal objetivo, investigou a natureza jurídica, os requisitos e os efeitos do que os romanos denominavam de “iustum matrimonium”. Retomou antigo debate, a respeito da natureza do casamento. Para os glosadores, observou Moreira Alves, o casamento decorria de um contrato desprovido de fundo patrimonial. Em oposição, tese que dava conta de que o matrimônio significaria tão somente um contrato, ainda que, segundo o então candidato, a literatura romana não mencionasse a expressão “contractus” com vista a qualificar o instituto. Alcançou concepções conceituais bem posteriores, que vinculavam o casamento à conveniência e à intenção dos contraentes. Nesse sentido, o consenso seria o ponto de partida para a compreensão desse arranjo institucional, o que promoveu outra interminável discussão, isto é, se o consenso matrimonial seria meramente inicial ou se seria contínuo.
Ilustrando a discussão, Moreira Alves mencionou passagem de Quintiliano, a respeito de uma mulher que julgou que o marido ausente teria morrido, pelo que contraiu novas núpcias, casando-se de novo. Segundo Moreira Alves, “o primeiro esposo retorna a casa, encontra-a no leito com o segundo marido, mata-a como adúltera (...) em sua defesa, ele alega a existência de adultério” [4]. A acusação certamente deve ter insistido que o consentimento nupcial é contínuo e não simplesmente inicial e originário. Moreira Alves explorou também outros aspectos do vínculo matrimonial romano, a exemplo da impossibilidade do casamento entre patrícios e plebeus, proibição levantada por meio da Lei Canuléia.
Os vários impedimentos matrimonias foram listados (o adúltero não podia se casar com sua cúmplice, o governador não podia se casar com mulher nascida ou domiciliada em sua província, o raptor não podia se casar com a raptada, tivesse ela consentido ou não, no rapto) [5]. Moreira Alves também elucidou o regime de bens no casamento romano, ensinando-nos que havia uma total independência econômica entre os cônjuges.
A tese trata também do casamento nulo, no sentido de que a nulidade poderia ser arguida a qualquer tempo, e por qualquer interessado [6]. Moreira Alves refere-se também ao tempus lugendi, tempo que deveria ser respeitado após a dissolução do casamento, com vistas à realização de um novo matrimônio, que variava de dez a doze meses. Os romanos se precaviam com a turbatio sanguinis, o que é chave interpretativa para a compreensão sociológica de que a tradição ocidental se revelou menos permissiva com o adultério feminino.
Moreira Alves explorou também o conceito romano de boa-fé, no sentido de que os antigos percebiam nesta uma falsa crença que matizava um erro. Por isso, a boa-fé sugere uma dimensão psicológica, cujo pressuposto seria o erro, na compreensão de Savigny, resgatada por Moreira Alves. A tese atinge, então, seu ponto central, enfrentando a nulidade de casamento contraído de boa-fé. As fontes não teriam explicitado o problema; porém, como hipótese de trabalho, Moreira Alves sustentou uma teoria intermediária, insistindo que os romanos não estranhavam o matrimônio putativo. Do ponto de vista epistemológico, Moreira Alves questionou teses até então prevalecentes, nas quais os autores “partindo de uma conjectura elevada à categoria de dogma, formaram-se cadeias de hipóteses”.
A tese de Moreira Alves é irretocável, com tema claro (o casamento no direito romano), com problema definido (o matrimonio putativo e a boa-fé), com marco teórico substancial (forte em autores canônicos e em fontes autênticas) e com hipótese sustentável (o conhecimento do matrimonio putativo pela tradição romanista).
Moreira Alves é um jurista, na mais completa acepção do termo. É também importante ressaltar a influência que Moreira Alves exerceu sobre importantes juristas brasileiros, a exemplo, principalmente, do ministro Gilmar Ferreira Mendes.
Moreira Alves é autor de portentoso livro de Direito Romano [1], bem como de uma série de estudos do mesmo assunto, publicado pelo Senado Federal [2], com ilustrativo estudo introdutório de Ronaldo Poletti, também romanista muito versado [3]. É nesse último livro que encontro a tese de livre-docência de Moreira Alves, defendida em 1961, em concurso disputadíssimo, cujas traços centrais Ronaldo Poletti retomou, no estudo introdutório acima mencionado. Fora um concurso memorável. Moreira Alves, no entanto (ficara em segundo lugar, o vencedor fora Alexandre de Castro Correia), retornou para São Paulo, onde venceu certame para a cátedra de Direito Civil, em 1968.
A tese que Moreira Alves apresentou à Egrégia Congregação da então Faculdade de Direito da Universidade do Brasil intitulou-se de Os efeitos da boa-fé no casamento nulo segundo o Direito Romano. Moreira Alves explorou o “vasto campo de controvérsias” que o casamento suscitava no direito romano, segundo observou logo no início desse erudito texto. A tese foi concebida a partir de fontes normativas primárias (Código Teodosiano, Fragmenta Quae Diquntur Vaticana, Gaio, as Institutas, o Digesto, as Novelas), de autores centrais no cânon literário clássico (Cícero, Juvenal, Suetônio, Tácito, Tito Lívio), a par dos mais expressivos romanistas (Savigny, Biondi, Makeldey, Mommsen, Pothier).
Moreira Alves enfrentou o problema da existência (ou não) de um casamento putativo no direito romano. Com tal objetivo, investigou a natureza jurídica, os requisitos e os efeitos do que os romanos denominavam de “iustum matrimonium”. Retomou antigo debate, a respeito da natureza do casamento. Para os glosadores, observou Moreira Alves, o casamento decorria de um contrato desprovido de fundo patrimonial. Em oposição, tese que dava conta de que o matrimônio significaria tão somente um contrato, ainda que, segundo o então candidato, a literatura romana não mencionasse a expressão “contractus” com vista a qualificar o instituto. Alcançou concepções conceituais bem posteriores, que vinculavam o casamento à conveniência e à intenção dos contraentes. Nesse sentido, o consenso seria o ponto de partida para a compreensão desse arranjo institucional, o que promoveu outra interminável discussão, isto é, se o consenso matrimonial seria meramente inicial ou se seria contínuo.
Ilustrando a discussão, Moreira Alves mencionou passagem de Quintiliano, a respeito de uma mulher que julgou que o marido ausente teria morrido, pelo que contraiu novas núpcias, casando-se de novo. Segundo Moreira Alves, “o primeiro esposo retorna a casa, encontra-a no leito com o segundo marido, mata-a como adúltera (...) em sua defesa, ele alega a existência de adultério” [4]. A acusação certamente deve ter insistido que o consentimento nupcial é contínuo e não simplesmente inicial e originário. Moreira Alves explorou também outros aspectos do vínculo matrimonial romano, a exemplo da impossibilidade do casamento entre patrícios e plebeus, proibição levantada por meio da Lei Canuléia.
Os vários impedimentos matrimonias foram listados (o adúltero não podia se casar com sua cúmplice, o governador não podia se casar com mulher nascida ou domiciliada em sua província, o raptor não podia se casar com a raptada, tivesse ela consentido ou não, no rapto) [5]. Moreira Alves também elucidou o regime de bens no casamento romano, ensinando-nos que havia uma total independência econômica entre os cônjuges.
A tese trata também do casamento nulo, no sentido de que a nulidade poderia ser arguida a qualquer tempo, e por qualquer interessado [6]. Moreira Alves refere-se também ao tempus lugendi, tempo que deveria ser respeitado após a dissolução do casamento, com vistas à realização de um novo matrimônio, que variava de dez a doze meses. Os romanos se precaviam com a turbatio sanguinis, o que é chave interpretativa para a compreensão sociológica de que a tradição ocidental se revelou menos permissiva com o adultério feminino.
Moreira Alves explorou também o conceito romano de boa-fé, no sentido de que os antigos percebiam nesta uma falsa crença que matizava um erro. Por isso, a boa-fé sugere uma dimensão psicológica, cujo pressuposto seria o erro, na compreensão de Savigny, resgatada por Moreira Alves. A tese atinge, então, seu ponto central, enfrentando a nulidade de casamento contraído de boa-fé. As fontes não teriam explicitado o problema; porém, como hipótese de trabalho, Moreira Alves sustentou uma teoria intermediária, insistindo que os romanos não estranhavam o matrimônio putativo. Do ponto de vista epistemológico, Moreira Alves questionou teses até então prevalecentes, nas quais os autores “partindo de uma conjectura elevada à categoria de dogma, formaram-se cadeias de hipóteses”.
A tese de Moreira Alves é irretocável, com tema claro (o casamento no direito romano), com problema definido (o matrimonio putativo e a boa-fé), com marco teórico substancial (forte em autores canônicos e em fontes autênticas) e com hipótese sustentável (o conhecimento do matrimonio putativo pela tradição romanista).
Moreira Alves é um jurista, na mais completa acepção do termo. É também importante ressaltar a influência que Moreira Alves exerceu sobre importantes juristas brasileiros, a exemplo, principalmente, do ministro Gilmar Ferreira Mendes.
NOTAS
[1] Moreira Alves, José Carlos, Direito Romano, Rio de Janeiro: Forense, 2010.[2] Moreira Alves, José Carlos, Estudos de Direito Romano, Brasília: Edições do Senado Federal, 2009.[3] É do estudo introdutório de Ronaldo Poletti que colho as informações sobre o concurso de Moreira Alves.[4] Moreira Alves, José Carlos, Estudos de Direito Romano, cit., p. 39.[5] Cf. Moreira Alves, José Carlos, Estudos de Direito Romano, cit., p. 45.[6] Moreira Alves, José Carlos, Estudos de Direito Romano, cit. p. 49.
REFERÊNCIA
GODOY, Arnaldo Sampaio de Morais. A tese de livre-docência de Moreira Alves sobre o casamento e Direito Romano. In: Consultor Jurídico. 14.6.2015. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2015-jun-14/embargos-culturais-tese-livre-docencia-moreira-alves-casamento>.
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