quinta-feira, 2 de julho de 2015

Crucifixos em Tribunais

Enviado por: Raíssa dos Reis Tavares
Autoria de: Emerson Giumbelli

Crucifixo no STF

No dia 6 de março de 2012, o Conselho Superior da Magistratura do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, em decisão unânime, deliberou pela retirada de símbolos religiosos nos espaços destinados ao público nos prédios do Poder Judiciário no Estado, mais especificamente, em plenários, salas de sessões e audiências e corredores. Trata-se de uma decisão que vai na contra corrente de várias outras a propósito do mesmo assunto, inclusive aquela que havia sido tomada em primeira instância nesse caso. Pela permanência dos objetos havia se manifestado também o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em 2007, quando foi interpelado sobre a legitimidade da presença de crucifixos em recintos públicos estatais. Os dias seguintes à decisão do Conselho gaúcho foram tomados por grande polêmica nos meios de comunicação, incluindo pronunciamentos de autoridades eclesiásticas e pedidos de reconsideração encaminhados ao Tribunal. É possível que o caso envolva nova decisão do CNJ.

Nas linhas que seguem, permito-me expressar minhas opiniões sobre o tema. Agrada-me pensar que elas estejam afetadas pelas pesquisas que realizei acerca das controvérsias sobre a presença de símbolos religiosos em espaços públicos. É também importante o diálogo com César Ranquetat Júnior, orientando de Ari Oro que acaba de defender sua tese sobre o assunto no PPGAS da UFRGS. Além de acompanhar debates recentes, em âmbito nacional e local, César localizou registros sobre campanhas de “entronização” de crucifixos em parlamentos entre os anos 1940 e 1960. Essas campanhas foram promovidas pelo Partido de Representação Popular. O PRP herda lideranças e bandeiras do movimento integralista, entre elas as palavras de ordem “Cristo e Nação”. Recuperar tais campanhas – e as reações que ocorreram – permite deixar mais evidentes as construções ideológicas que sustentam certos objetos nas paredes de instituições que são centrais para a democracia.

A presença de crucifixos em recintos estatais ou de instituições públicas é algo recorrente no Brasil. Além de tribunais das mais diversas instâncias, eles podem ser encontrados em plenários legislativos dos três âmbitos governamentais, em sedes do Poder Executivo, em escolas e universidades, em hospitais e quartéis. Reunir o máximo de ocorrências dessa presença resultaria em uma curiosa coleção iconográfica, uma vez que esses objetos em geral passam despercebidos. Sua existência está relacionada ao lugar detido pelo catolicismo na sociedade e na cultura brasileiras. Sobretudo após a instauração do regime republicano, essa situação convive com contestações. Recentemente, repetem-se as ocasiões em que ocorrem reivindicações da retirada de “símbolos religiosos” de recintos públicos estatais em nome do princípio da laicidade. Destacam-se pessoas e entidades que assumem o ateísmo como causa e/ou que estão associadas ao universo feminista e LGBT. No caso da decisão do Judiciário gaúcho, tratou-se de uma resposta a uma interpelação levantada por um conjunto de organizações desse universo feminista e LGBT, encabeçadas pela Liga Brasileira de Lésbicas.

A defesa da permanência dos crucifixos em recintos estatais apoia-se em argumentos que insistem em dois pontos. O primeiro afirma que se trata de objetos que se sustentam na condição majoritária do catolicismo no Brasil. O segundo recorre à noção de “tradição”, sendo a presença dos crucifixos um reconhecimento do papel histórico que o catolicismo desempenhou na história nacional. O primeiro argumento, além de se basear em uma suposição (a de que ao se declarar católico, alguém suportaria a presença do crucifixo em um tribunal), depende de uma concepção de democracia que privilegia o princípio da maioria. Ele provoca, portanto, a defesa de uma outra concepção, que procura compor o princípio majoritário com o respeito ao pluralismo. Acolhido o pluralismo, tornam-se fundamentais a constatação e o reconhecimento da situação multirreligiosa que vigora no Brasil contemporâneo. Acrescente-se que a liberdade de crença não precisa de crucifixos fixados em paredes: aqueles que freqüentam os plenários, salas de sessão e corredores de um tribunal podem trazer consigo os objetos que correspondem a suas crenças, sejam elas quais forem, inclusive as católicas. 

O segundo argumento, por sua vez, prefere esquecer que o papel histórico do catolicismo na história nacional está vinculado ao seu lugar socialmente hegemônico e ao seu projeto de conquista cultural. Isso não significa que a contribuição do catolicismo deva ser ignorada. Para isso servem, por exemplo, as políticas associadas à noção de patrimônio histórico, cultural e arquitetônico. Essas políticas concedem devidamente um reconhecimento ao catolicismo, ao mesmo tempo em que se esforçam agora em fazer o mesmo com outras contribuições, como a dos afro-descendentes. Em suma: a presença de crucifixos em recintos estatais públicos não se sintoniza com uma concepção pluralista da democracia, nem é uma forma adequada para o reconhecimento da importância do catolicismo no Brasil.

Outro argumento comum entre os que defendem a presença dos crucifixos, especialmente em tribunais, apela para sua capacidade de traduzir valores universais. Sendo a representação do mais injusto julgamento da história, o crucifixo serviria de alta inspiração a todos os presentes. Consolo, retidão, perdão – são outros valores lembrados em sua associação com o objeto. Contudo, as próprias contestações sobre a presença do crucifixo colocam em dúvida essa sua capacidade universalista. Um ponto levantado nas contestações é a influência indevida que o objeto teria sobre as decisões judiciais. Há, por outro lado, quem questione se a ausência de símbolos religiosos poderia garantir maior isenção por parte da Justiça. Concordo que o efeito da presença ou ausência dos crucifixos é uma questão em aberto. Resta, contudo, a associação entre o Estado e um símbolo que motiva leituras muito diferenciadas, incluindo aquelas que expressam um incômodo com sua particularidade. Há, em minha opinião, um fundamento consistente nesse incômodo.

A noção de laicidade, como já foi assinalado, desponta como o principal fundamento para os detratores da presença de símbolos religiosos em recintos estatais. Creio que se trata de uma noção que merece ser problematizada, como mostra o caso francês em sua proibição do uso de “signos religiosos ostensivos” em escolas públicas. Defender a retirada dos crucifixos das paredes de tribunais não significa, necessariamente, negar o direito à presença da religião em quaisquer espaços públicos. Tal negativa pode ser uma das conseqüências de certos usos militantes da noção de laicidade. Pode ser também levantada como uma espécie de “perigo” por aqueles que se opõem à retirada dos crucifixos de recintos estatais: primeiro, dizem, tiram os crucifixos, depois vão querer mudar os nomes de cidades com referências religiosas... A meu ver, é preciso considerar as várias situações de presença das religiões no espaço público de acordo com suas especificidades.

Vamos então nos ater ao caso dos crucifixos em tribunais: diria que se tornam problemáticos não por serem “religiosos” (coisa que alguns argumentos acham que não são), mas pela sua associação com referências que, além de abarcarem apenas um espectro de posições em nossa sociedade plural, correspondem a grupos e valores vinculados a interesses específicos. Esse é o motivo pelo qual, na minha opinião, não faria sentido substituir os crucifixos por outros símbolos. Tampouco resolveria acrescentar outros símbolos (quais? quantos?), em uma tentativa vã de “representar” toda a sociedade. Pelo mesmo motivo, não têm razões aqueles que, para contrariar os detratores dos crucifixos, atacam também a presença de imagens de Themis, essas alegorias da justiça que costumam ser encontradas nas entradas e dependências de sedes do Poder Judiciário; afinal, não consta que a “deusa pagã” reúna fieis no Brasil dos dias atuais. Mas com os crucifixos é diferente, pois eles correspondem a uma visão e a um segmento específicos dentro da composição ideológica e social do Brasil. Há, portanto, fortes razões para contestar sua presença em lugar privilegiado em recintos estatais públicos.

A decisão da Justiça gaúcha não chega a ser uma surpresa, para quem acompanha a controvérsia de posições no campo do Direito. Além de seu conteúdo, ela tem o mérito de manter na pauta de discussões um tema que, lamentavelmente para muitos, é de última importância. Evitar a invisibilidade desses crucifixos já é algo bastante efetivo – e incômodo. Respondendo às questões do jornal Zero Hora (07.03.2012, p. 34), de Porto Alegre, o padre César Leandro Padilha assim concluiu: “Pergunto: para quem faz mal um crucifixo em uma sala do ambiente jurídico?” As entidades que apresentaram a solicitação junto ao Judiciário ofereceram suas razões. Parece-me que multiplicar as motivações para o incômodo é um dos caminhos para se conferir a essa questão a importância que ela merece. Nesse sentido, seria fundamental que católicos e católicas, cristãos e cristãs, que discordam da presença de crucifixos em recintos estatais, também fizessem suas manifestações. Existem pessoas cujo compromisso cristão suporta mal ver os símbolos de sua crença expostos em lugares que consideram inadequados.

Um regime democrático deve ter um compromisso consequente com o princípio da inclusão. É preciso reconhecer que a realização desse princípio é uma construção, atrelada a percepções e lutas históricas. Em um passado não tão distante, a escravidão baseada em critérios raciais já foi aceita como princípio de organização social. Hoje, por exemplo, se uma novela televisiva não incluir entre seus protagonistas atores e atrizes negros, haverá um questionamento. A decisão do Conselho de Magistratura gaúcha acerca dos crucifixos capta adequadamente uma demanda que permite avançar nas exigências democráticas de inclusão. Se vivemos em uma sociedade que é capaz de garantir o direito de seus cidadãos a portarem os símbolos de suas crenças e seus pertencimentos, que é capaz de elaborar os instrumentos adequados para o reconhecimento das contribuições dos diversos grupos e tradições para fins comuns, penso que a pergunta mais pertinente é: para quem faz mal não haver um crucifixo na parede de um tribunal?



REFERÊNCIA

GIUMBELLI, Emerson. Crucifixos em tribunais. Disponível em: <http://www.ufrgs.br/ner/index.php/estante/visoes-a-posicoes/33-crucifixos-em-tribunais>. Acesso em: 30 jun. 2015.

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