quinta-feira, 2 de julho de 2015

A Filosofia Romana de Cícero

Enviado por: Pedro Santin Dal Ri

Autor do texto: Adriano Ferreira
O direito romano exerceu enorme influência na formação do direito privado contemporâneo. Se pensarmos no direito civil brasileiro, inúmeros institutos derivam, direta ou indiretamente, do direito civil romano. Adotamos, no vocabulário jurídico, palavras em latim clássico, e estruturamos o mundo jurídico de um modo bastante próximo do romano.

Todavia, quando se pensa em filosofia do direito, talvez a herança mais remota não seja romana, e sim grega. Os gregos suscitaram problemas quanto ao fundamento e ao conceito de direito, situando-o de modo complementar com a natureza, dentro da Pólis, e buscando sua completude ética, estabelecendo a norma jurídica como sentido para a conduta humana, sobretudo entre os socráticos.

Os romanos, em termos de pensamento jurídico, teriam legado à posteridade a teoria geral do direito, ou seja, reflexões de cunho mais prático, que trazem regras gerais de funcionamento do direito enquanto meio de resolução de conflitos e de pacificação social. Isso porque, já em Roma, o direito transforma-se em um sistema de normas eficaz na produção de decisões judiciais.

Convém destacar que o fenômeno jurídico romano manifesta alguns aspectos peculiares, que representam novidades no mundo ocidental:

1. Em Roma, surge uma profissão específica do direito, levando à formação de uma classe especializada em seu estudo e que rotineiramente trabalha com ele. Isso é uma novidade em relação ao mundo grego, pois jamais um cidadão admitiria uma existência especializada em qualquer assunto, voltada para uma profissão. O grego buscava a plenitude humana e o direito era apenas uma parte, não especializada, dessa plenitude.

2. A existência de uma classe específica de juristas em Roma permite o desenvolvimento de uma considerável bibliografia científica sobre o direito, que inclui desde tratados até obras didáticas, correspondentes aos nossos “manuais” universitários.

3. Uma relação paradoxal entre o direito positivo e o direito natural e a formação de três níveis simultâneos de direito.

3.1. Primeiramente é importante constatar que os romanos consideram o direito uma técnica para manter a ordem e fazer respeitar as regras sociais. Seu fundamento é permitir que o poder social seja exercido, levando a sociedade a seu devido curso. Para tanto, o direito recorre à lei. Mas, ao contrário do que ocorre hoje com o positivismo, o direito não é extraído da lei, mas a lei é construída para concretizar o direito.

3.2. Nesse sentido, convém destacar que o romano concebe o direito, do qual extrai a lei, em três níveis: direito civil, direito das gentes e direito natural. O primeiro nível leva às leis aplicáveis aos cidadãos romanos; o segundo, às leis aplicáveis aos membros do Império Romano que não gozam do status de cidadãos; o terceiro, às regras aplicáveis à universalidade do gênero humano. Todavia, na prática, apenas os dois primeiros níveis criam direitos; o direito natural funciona apenas como um mecanismo retórico e não impede, em momento algum, a escravização do estrangeiro, que habita fora dos limites do Império e não goza da proteção do direito das gentes.

A tendência romana é de expansão da cidadania e de diminuição do direito das gentes, mas em momento algum o direito natural torna-se forte o suficiente para abolir a escravidão e impedir a conquista de povos estrangeiros.

Ainda que tenhamos afirmado que a grande contribuição romana foi na teoria geral do direito e não na filosofia, isso não significa que não tenha havido uma filosofia romana. Um pensador que merece ser destacado é Marco Túlio Cícero (106-43 a.C.), cuja vida corresponde à transição do período helênico para o período romano da história da filosofia e marca o fim da cultura romana republicana, que se transformará em cesarista.

Trata-se de uma pessoa qualificada de vaidosa, irônica, ferina, mas de uma retidão de caráter exemplar, feroz defensor da República e, talvez por isso, repleto de inimigos. Ocupou diversos cargos políticos, sempre de modo louvável, tratando o bem público com respeito e buscando concretizar seus ideais.

Enquanto pensador, Cícero pode ser visto como eclético, pois concilia tendências e ideias diversas em seus pensamentos. Suas obras filosóficas adotam a forma platônica dos diálogos e seus pensamentos políticos congregam influências múltiplas.

Em sua obra Sobre a República, o filósofo traz os fundamentos da vida civil, apresentando a ideia de que a Res publica (coisa pública, ou simplesmente “república”) pertence ao povo, sendo res populis (coisa do povo). Isso inaugura a perspectiva de soberania popular.

Além disso, Cícero diferencia o povo de um aglomerado qualquer de pessoas. Para que um conjunto de homens seja um povo, haveria a necessidade de se associarem por dois consensos: o direito e o bem comum. Assim, quando um grupo define quais serão suas regras fundamentais e quais valores correspondem ao bem comum, transforma-se em um povo.

Definidos os dois consensos acima, o povo cria um órgão deliberativo, que é o Estado, ao qual atribui o poder de zelar pelos consensos fundamentais. Enquanto o povo estiver de acordo quanto a suas regras jurídicas e ao seu bem comum, o Estado continuará a existir e a ser respeitado.

Cícero avalia o Estado a partir de uma perspectiva interessante: a liberdade de quem governa. Quanto mais livre for o governante, melhor será o Estado. Como o verdadeiro detentor do poder político é o povo, ele deve ser o grande soberano, pois somente o povo pode governar livremente.

A falta de liberdade seria causa de insatisfação em qualquer instância. Se faltar liberdade ao povo, haverá o risco de ele se rebelar, deflagrando uma guerra civil e ameaçando a sociedade. O bom governo deve ser exercido livremente e respeitar a liberdade dos governados.

Para cumprir tal objetivo, Cícero desenvolve um governo misto, que aproveita pontos positivos dos diferentes governos: da realeza, deve-se aproveitar a unidade do poder, havendo a necessidade de uma figura que personifique o Estado, mas sem a sua perpetuidade no poder nem o caráter hereditário do mesmo; da aristocracia deve-se aproveitar o princípio deliberativo, que permite a discussão entre diversas instâncias da sociedade, ouvindo-se a todas; do governo popular deve-se aproveitar a liberdade de todos, sempre mantida e respeitada durante o governo.

A proposta resulta num modelo bastante próximo dos atuais. Podemos ilustrar com o presidencialismo, no qual existe a figura do soberano no chefe do Poder Executivo, há um Parlamento deliberativo e o respeito à soberania popular, convertida em representação.

Mas, para que o sistema funcione, há a necessidade de o Estado submeter-se às leis que limitam seus atos e preservam a liberdade do povo. Em Sobre as leis, Cícero afirma que a lei é fonte de virtude para os cidadãos e mecanismo que consolida as forças do Estado.

Ela é vista, ao mesmo tempo, como instrumento valorativo que define o justo e o injusto, por um lado, e ato de poder, que manda e proíbe, por outro. Sua autoridade colocar-se-ia, de modo inovador, acima do direito, num modelo novamente parecido com o nosso, obrigando o juiz a julgar conforme seus preceitos.

Sua força decorre de ela derivar do direito natural, sendo expressão racional da vontade dos deuses e, por isso, colocando-se num patamar acima dos homens. Mas quem seria capaz de fazer leis que correspondam à vontade dos deuses? Numa resposta platônica, Cícero afirma que os sábios são capazes de identificar a vontade divina, pois essa vontade se manifesta pela razão.

O sábio torna-se uma pessoa ética e identifica, graças à razão, os preceitos que devem constar nas leis. Quanto à ética, ela decorre do comportamento virtuoso e leva à felicidade. A novidade de Cícero está na definição da grande virtude a ser buscada: honestidade.

A honestidade consiste na soma de quatro fatores:

1. Conhecimento: somente as pessoas que buscam a verdade, que desejam conhecer, são capazes de refletir sobre seus atos e encontrar o comportamento adequado, manifestando senso de justiça, força de caráter e moderando as paixões.

2. Senso de justiça: quando o agente usa sua razão para avaliar seu ato, irá proceder de tal modo a não causar dano a outrem (dever de justiça) e nunca tomará os bens públicos como particulares, usando coisas públicas em comum e apenas suas coisas próprias em particular (beneficência).

3. Força de caráter: o agente também demonstrará que possui caráter, agindo sempre com boa-fé, respeitando as demais pessoas com quem se relaciona, e também agirá respeitando a natureza, aos deuses e à humanidade em geral.

4. Moderação das paixões: o grande inimigo do conhecimento é a paixão, que afasta o homem da razão e impede de agir com senso de justiça e força de caráter, corrompendo-o. A filosofia surge como um medicamento que cura o homem das paixões e o restitui à razão, permitindo a conduta honesta.

Para Cícero, portanto, o ser humano deve agir eticamente. Para tanto, deve ser honesto. Isso exige usar seu conhecimento para controlar as paixões e demonstrar senso de justiça e força de caráter, não prejudicando os demais, respeitando o bem público e demonstrando boa-fé.

O sábio age com honestidade, pois possui capacidade para tanto. Deve, assim, criar as leis para auxiliar o Estado e a população em geral a também serem honestos, levando a sociedade ao bem comum.

Destacamos a atualidade das reflexões de Cícero, especialmente quanto ao aspecto ético da conduta e à liberdade. Trata-se de uma questão ainda mal resolvida, sobretudo em um país periférico como o nosso, a distinção entre o público e o privado e a incapacidade de as pessoas agirem com honestidade. Também não conseguimos construir uma sociedade livre, pois condenamos a maioria da população ao aprisionamento do trabalho assalariado, formal ou informal, disseminando a insatisfação e a frustração social.

Referências:
FERREIRA, Adriano. 18. Roma: Cícero. 11.06.2011. Disponível em: <http://filosofiadodireito.info/fildireito/?p=176>.

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