segunda-feira, 29 de junho de 2015

A Genealogia da Noção de Direito Internacional

Enviado por: Rafaella Andreolli Pohlmann

Autor do texto: Paulo Emílio Vauthier Borges de Macedo
A Concepção Romana

O direito romano exerceu profunda influência sobre os autores de direito internacional. Até o século XVIII, além das fontes, Roma legou a todo o Ocidente, inclusive ao Reino Unido, uma terminologia jurídica comum. Sempre que possível os autores se serviam do vocabulário e das fontes romanas. Em verdade, essas referências nada diziam sobre o direito internacional, mas constituíam uma tradição – bem como uma fonte de inspiração – obrigatória. As normas sobre a propriedade privada (dominium), por exemplo, foram aplicadas sem a menor distinção para a soberania territorial; das regras sobre os contratos internos se aduziram os tratados internacionais; as disposições sobre o mandatum se estenderam às funções dos agentes diplomáticos.

Do mesmo modo, o conceito de direito das gentes é tomado dos romanos: corresponde à tradução literal de jus gentium. Surge primeiro em Roma, durante a organização tribal, mesmo antes da monarquia – que foi instituída ao mesmo tempo em que a Cidade, em 754 a.C. – com um significado bastante diferente de direito internacional. A organização social da península itálica baseava-se, nesses princípios, num sistema denominado “gentílico”, porque constituía o direito das “gens”, das pessoas que pertenciam ao mesmo clã ou a clãs aparentados. Era possível distinguir entre “o jus gentilicum que regia as relações entre as classes superiores e as inferiores no seio de uma mesma gente, o jus gentilitatis que compreendia as leis em vigor no seio da classe superior dos gentis e o jus gentium que regulava as relações entre as diferentes gentes”. A gens representava tanto a fonte normativa como o fato jurídico por excelência; as normas jurídicas originavam-se e destinavam-se gens romana.

Mais tarde, o jus gentium romano passou a aplicar-se àquelas relações entre os estrangeiros (peregrini) entre si e com os cives romanos. Tratava-se de um conjunto de ordenações cujos destinatários eram seres humanos, não organizações políticas. Além disso, consistia num direito intra gentes, não inter gentes. A partir de 242 a.C., era ministrado por um praetor peregrinus, uma figura itinerante; fator que permitiu que seus editos pudessem  harmonizar propostas culturais e tradições jurídicas distintas. O pretor precisava, pois, privilegiar os acordos reais, não os vínculos formais, a substância, em vez da forma, pois esta é própria de uma só comunidade e não se pode universalizá-la com facilidade. Nos contratos, deveria privilegiar a volutas, o consensus, ainda que a forma fosse precária. Essa qualidade destaca-se do restante do direito romano, formalista por essência. Mesmo nos seus primórdios, já se delineia a tarefa fundamental desse ramo: “governar as relações entre os “estranhos”, entre seres que não pertencem à mesma tribo, ao mesmo clã, à mesma nação, à mesma cultura, mas que compartilham somente uma humanidade comum”. O jus gentium encerra consigo a exigência de um direito universal, de um direito que deveria ser, em princípio, aceito por todos os homens, deveria ser um ramo não nacional, mas aberto à diferença.

Esse ramo pertencia, de fato, ao direito positivo, mas diversos elementos o aproximavam do direito natural. Como o orgulho romano impedia que se adotasse, de maneira direta, regras jurídicas externas, o jus gentium recepcionava e re-elaborava os usos e costumes dos outros povos. Introduziu-se assim um corpo de jus aequum, que pouco tem a ver com a doçura ou a mitigação dos rigores da lei – conforme uma definição bastante corrente, no Brasil, de eqüidade. Tratava-se antes de uma preferência pela vontade real, em vez de uma fórmula instrumental; uma exigência de universalidade para favorecer a comunicação. Ademais, a noção de bona fides, de fidelidade com a palavra empenhada, ocupava posição central. A boa fé revela-se fundamental para a estabilidade e a perenidade das relações comerciais e constitui uma garantia de credibilidade pessoal. Além de relações comerciais, Roma estabelecia com os estrangeiros relações de patronato, amicitia e hospitium. O jus gentium, assim, ocupava-se também da preservação dos mores. Esses conteúdos éticos tornavam o direito das gentes mais próximo do direito natural do que do direito positivo.

Dessa feita, como o jus gentium apresentava-se como um conjunto de normas universais, com um processo de formação bastante vinculado ao do costume – o qual se perde em tempos imemoriais –, não se deve estranhar o fato dele ter sido, não raro, confundido com o próprio direito natural. Cícero mesmo não faz distinção entre o jus naturalis e o jus gentium. No De Officiis, ele investiga a natureza das obrigações que proíbem prejudicar o próximo: “Ora, por certo isso não se dá apenas por força da natureza, isto é, pelo direito das gentes, mas também em virtude das leis dos povos, que sustentam a coisa pública em cada cidade. Elas preceituam igualmente que não é lícito prejudicar os outros em benefício próprio.” Adiante, Cícero demonstra a validade dessa lei mesmo diante da torpeza dos costumes e a corrupção da lei civil:

Embora eu constate que semelhante embuste não é considerado torpe em virtude da perversão dos costumes, nem é proibido pela lei ou o direito civil, creio que a lei da natureza o proíbe. Com efeito, existe uma sociedade – já se disse muitas vezes, mas convém repeti-lo outras muitas – bastante ampla, a sociedade de todos os homens; uma mais restrita, a dos que integram a mesma família, e, por fim, uma ainda menor, as dos que são da mesma cidade. Quiseram, pois, nossos antepassados que existisse, por um lado, o direito dos povos, por outro, o direito civil. O direito civil não precisa ser necessariamente o direito dos povos, mas o direito dos povos precisa ser necessariamente o direito civil.

Perceba-se que o direito civil, o direito da cidade, encontra-se contraposto ao direito das gentes, o direito que decorre da natureza, da ampla sociedade dos homens. Todo direito origina-se de uma sociedade: o direito civil, de uma sociedade pequena que é a própria cidade, e o direito das gentes de uma magna communitas humana, a sociedade de todos os homens. Os pensadores romanos, influenciados pela filosofia estóica, ao confrontar o direito civil com o direito das gentes, promoviam generalizações que alteravam de maneira significativa o conteúdo do termo. O jus gentium histórico dos romanos utilizava a experiência estrangeira em casos muito particulares; contudo, o jus gentium filosófico compreendia normas e instituições jurídicas que se encontravam por todas as partes, como, entre outras, as relativas ao matrimônio, à defesa e à proteção da propriedade, às obrigações de reparar o dano. Tratava-se, pois, de um direito universal comum, o que dificultaria muito a distinção com o direito natural.

Os grandes juristas romanos também apresentavam essa indeterminação. Nas compilações, eles não se limitavam a arrolar os institutos do direito das gentes, mas também buscavam defini-lo, e era a filosofia grega, não a prática jurídica corrente, que servia de matriz. Cumpre salientar que, entre as diversas matérias reguladas por esse jus gentium filosófico, algumas possuíam caráter internacional, como o direito de legação e as regras sobre o botim e os despojos de guerra, mas a maior parte concentrava-se no direito privado, acrescido de alguns temas de direito público interno, como o status dos deportados. Ainda não se mostra possível, portanto, estabelecer qualquer correlação com o direito internacional. No Digesto, o seu título inicial comporta duas definições principais de jus gentium, uma de Gaio e a outra de Ulpiano; ambas remetem o ramo a um fundamento natural. Para Gaio:

Em todos os povos que são regidos pelas leis e pelos costumes, serve-se tanto do direito que lhes é próprio, como do direito que é comum a todos os homens. Com efeito, o direito que cada povo estabeleceu para si é próprio à cidade ela mesma; mas o direito que a razão natural estabeleceu entre todos os homens é uma regra segundo a qual todos observam igualmente e se chama direito das gentes, na medida em que é o direito que todas as nações se servem.

Há, portanto, duas categorias de normas: o direito civil e o direito das gentes. Aquele é próprio de cada Estado, que é também seu autor; este é comum a todos os homens e se manifesta de forma igual em todos os povos. Os povos não o criam, ele decorre de um princípio superior, a naturalis ratio. Trata-se de um direito anterior ao direito positivo, originado num estado de inocência primitiva. Percebe-se, de maneira clara, a oposição entre o direito de um povo e aquele comum a todos os povos, um direito baseado na vontade humana e outro decorrente da reta razão, um direito escrito e outro não-escrito. Não há, pois, problema algum em substituir a expressão jus gentium pela de direito natural.

Ulpiano, por sua vez, acrescenta um terceiro termo a essa divisão das fontes: jus naturale. Sua exposição principia por este nome, o qual compreende as funções vitais mais elementares – a união dos sexos, a procriação, a educação da prole – que a natureza reserva a todos os seres vivos, humanos ou animais. Esse jus naturale parece remontar à lei natural dos estóicos. Por oposição a esse conceito, o autor define o direito das gentes: “O direito das gentes é aplicado às gentes humanas, que por meio do entendimento pode depreender facilmente da natureza, e, entre todos os animais, apenas o homem compartilha [essa lei] entre si.”. O direito das gentes constitui a porção do direito natural que se aplica somente aos seres humanos.

Essa divisão remonta a uma concepção pitagórica que pressupõe a existência de uma idade de inocência, uma era de ouro, a qual se contrapõe a uma idade do pecado, uma era de ferro. Nos tempos antigos, tudo seria comum, o homem seria livre e se encontraria inserido de modo direto na natureza. Depois, haveria seguido a perversão e o egoísmo, e teria instauradose a propriedade privada e outras instituições excludentes. Em Ulpiano, o direito natural corresponde ao período idílico, e o direito das gentes o período posterior.

Apesar da inserção desse terceiro termo, tanto Ulpiano como Gaio consideram – consoante os ensinamentos de Aristóteles – o direito civil um ius proprium, e o opõe a um ius commune. A analogia ao estagirita revela-se, de fato, imperfeita, pois, se em Gaio o direito comum equivale ao direito das gentes, em Ulpiano o ius commune seria o direito das gentes e também o direito natural. Neste autor, tudo o que não for direito civil é direito comum. Portanto (com a insistência na analogia), uma vez que o direito civil mostra-se particular e mutável, o jus gentium compartilharia com o jus naturale a sua imutabilidade. Caso essa característica se imponha aos homens em virtude de um princípio superior, como a razão natural de Gaio, então o direito das gentes de Ulpiano não pertenceria ao direito positivo e não corresponderia à realidade histórica do jus gentium romano. Possuiria apenas uma natureza filosófica e helênica. Para evitar essa conclusão, a característica “comum” do direito das gentes de Ulpiano precisaria derivar de uma coincidência de institutos jurídicos entre os diversos povos. Ou Ulpiano seria um mau jurista, por não descrever o jus gentium histórico com a devida acuidade, ou seria um mau filósofo, por desconhecer os fundamentos da bipartição aristotélica.

Em qualquer uma das interpretações, deve constatar-se que nem o jus gentium de Ulpiano nem o de Gaio assemelham-se ao direito internacional contemporâneo. Ainda que se apliquem aos mais diferentes povos, os verdadeiros sujeitos não são as gentes ou os Populi que os autores mencionam. Como no direito civil e no direito natural, os sujeitos são os indivíduos. Em Ulpiano, a tônica repousa sobre o adjetivo humanae; o emprego do substantivo gentes, em vez de genus humanum – expressão a qual, deve salientar-se, foi empregada mais acima no texto –, serve para manter o jogo de palavras com o termo jus gentium e o valor probatório do qual ele supostamente deriva. O mesmo ocorre com Gaio. O termo populi não equivale ao sujeito do jus gentium nem em direito nem na sintaxe, pois o apud inserido no final o torna um complemento de lugar. Além disso, convém ressaltar a repetição de omnes, que aparece quatro vezes na frase. “Longe de ser ius inter gentes ou inter populos, o direito das gentes dos nossos dois autores deve ser entendido como inter homines” Os indivíduos são os sujeitos; mais precisamente os homens livres, por causa da oposição ao direito civil que se dirige aos homens que possuem, além da liberdade, o status civitatis.

Referência:
MACEDO, Paulo Emílio Vauthier Borges de. A Genealogia da Noção de Direito Internacional. Disponível em: <http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/rfduerj/article/download/1349/1138>; ou clique aqui para acessar o arquivo em cache.

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