segunda-feira, 5 de outubro de 2015

A influência da filosofia estoica no Direito Romano por intermédio do ius honorarium e do Corpus Iuris Civilis

Enviado por: Héryta Araújo

O que segue é um recorte do artigo A Influência da Filosofia Estoica no Direito Romano por Iintermedio do Ius Honorarium e do Corpus Iuris Civilis, que apresenta o diálogo entre as disciplinas de  História do Direito e Introdução ao Estudo do Direito. Sua leitura é válida como aprofundamento e desenvolvimento das habilidades argumentativas nessas áreas.

Autoria de: Luisa Rocha Cabral e Aléxia Alvim Machado Faria

Entre os vários sistemas filosóficos gregos que os romanos conheceram, o estoico foi o predileto da alta cultura [46]. Os princípios estoicos eram sistematicamente ensinados nas casas nobres de Roma, de modo que os jovens aprendiam o que era a virtude com base nas vidas exemplares de Zenão, Cleantes e Epicteto. Isso fez com que o estoicismo se tornasse “a fonte filosófica sem a qual o Direito Romano não poderia ter atingido o grau de desenvolvimento que o caracterizou na época imperial” [47].

O enraizamento do estoicismo na mentalidade jurídica latina pode ser demonstrado por intermédio da semelhança entre o conceito de jurisprudência de autoria do jurisconsulto Ulpiano (150-228) e a definição de lei atribuída a Crisipo, presente em um fragmento do Digesto [48]. Em ambas as definições, o direito apresenta, simultaneamente, natureza sagrada e humana, e o estoicismo foi a única corrente filosófica da Antiguidade que concebeu homens e deuses vivendo sob a mesma legislação. Para Crisipo, “a lei é a rainha de todas as coisas humanas e divinas, tributária do logos racional que permeia o universo” [49], ou seja, ele concebia o conhecimento da ciência do direito como conhecimento das coisas humanas e divinas.

Além disso, assim como a lei de Crisipo se dirige aos homens para lhes mostrar o que é certo e errado, a jurisprudência de Ulpiano não se limita a ensinar o justo, mas também o injusto, pois, para ambos, se deveria ter um conhecimento integral da justiça. A lei somente poderia ser compreendida de modo integral pelos sábios, os quais a cumprem não por medo da sanção negativa, mas pela convicção acerca de sua necessidade e utilidade para a vida humana. Segundo Matos,

a jurisprudência romana se apresenta como ciência total, pois caso se limitasse unicamente ao justo, não iria conhecer de maneira completa o fenômeno sobre o qual se debruça. Para compreendermos o que é lícito, devemos saber também acerca do ilícito. A exigência de totalidade presente na formulação de Ulpiano remonta à doutrina estoica, que se define como conhecimento integral do mundo, entrelaçando os conteúdos da Física, da Lógica e da Ética [50]. 

No Digesto também é possível encontrar um trecho que recomenda aos juízes não se irritarem contra os maus nem chorarem devido às lamentações dos infelizes, pois convém ao julgador manter um comportamento constante e reto de modo a salvaguardar a sua dignidade [51]. Em outra passagem, aconselha-se que o julgador seja acessível às partes, mas evite a familiaridade, pois da intimidade comum pode nascer o desprezo pela dignidade [52]. Tais recomendações fundamentam-se na figura do sábio estoico, inabalável diante das alegrias e das tristezas da vida, as quais não são verdadeiros bens e males. O único bem é a virtude e o único mal consiste em perdê-la.

 A justiça, para o estoicismo, depende da habitualidade de se praticar o bem, a partir de uma decisão voluntária do ser racional. A definição de justiça de Ulpiano, presente no Digesto, foi, portanto, influenciada pela doutrina estoica: “vontade constante e perpétua de dar a cada um o seu direito” [53]. Além disso, os famosos princípios axideontológicos do Direito Romano – honeste vivere, alterum non laedere e suum cuique tribuire, elencados por Ulpiano no Corpus Iuris Civilis, também foram nitidamente extraídos da filosofia estoica. O princípio honeste vivere indica que o Direito deve zelar para que as relações entre os homens baseiem-se na honestidade e boa fé de cada um, de acordo com a reta razão e com os bons costumes [54].

O princípio do nemine laedere significa que não lesar é o fundamento da responsabilidade de toda a ordem jurídica e que o exercício dos direitos encontra limites nos direitos das demais pessoas inseridas na vida social [55]. Já o princípio suum cuique tribuire indica que o Direito deve conferir a cada um o que lhe é devido, de modo que todos realizem suas potencialidades enquanto seres humanos [56].

Viver honestamente, conforme a moral característica do homem médio, é viver em conformidade com a natureza racional do logos para alcançar a perfeição e a felicidade, ou seja, segundo a lei moral individual do estoicismo. Não causar dano significa respeitar os direitos dos homens, dentre os quais se sobressai a liberdade e sua expressão concreta, a propriedade. Tal princípio fundamenta-se no pressuposto estoico de que todos os seres humanos são igualmente livres, de modo que cabe a todos os indivíduos respeitar tal liberdade. Por fim, o princípio de conferir a cada um o que lhe é devido, ou seja, seus direitos, fundamenta-se na definição de justiça da filosofia estoica já abordada.

 Todavia, a principal contribuição do estoicismo para o desenvolvimento do Direito Romano, segundo Arnold [57], foi a noção de que ele deveria se tornar uma “lei comum” que garantisse a liberdade e a igualdade do Direito Natural estoico e fosse, portanto, capaz de impedir os romanos de transformarem o seu sistema jurídico em um ordenamento mecânico e rotineiro que apenas servisse para manter os privilégios de casta. É notória a influência dessa noção nos preceitos do ius honorarium.

Conscientes da missão universalizante do Direito, os magistrados da República concebiam-no como um sistema de princípios aptos a harmonizar as contradições do próprio ordenamento jurídico, sobressaindo a ideia de equidade. A tarefa da jurística romana nos parece ser a adaptação dos postulados da razão natural estoica às condições da vida em sociedade, sendo que tal processo teria se concretizado nas adequações que o ius honorarium efetivou em relação ao ius civile.

Ao flexibilizarem as normas estanques do antigo direito civil diante dos inúmeros casos verificados na realidade concreta [58], os juristas supriam-no e corrigiam-no tendo em vista a utilidade pública [59]. Tal esfor- ço teve sua origem com Scevola e seu questor [60] Rutilius Rufus (158 a.C-78 a.C), que se opuseram è extorsão dos publicanos [61] nas províncias asiáticas, declarando inválidos todos os contratos desonrosos, ainda que tivessem sido celebrados conforme as formalidades do ius civile [62]. A aplicação do princípio da equidade regrediu nos governos tirânicos dos imperadores Júlio-Claudianos, mas voltou a florescer sob a direção dos antoninos.

A ideologia estoica, consequentemente, incrustou-se nas senten- ças e nas normas jurídicas do Direito Romano por meio do ius honorarium, sendo que elas nos chegaram mediante o Corpus Iuris Civilis. A construção desse corpo jurídico sistemático, coerente e unitário se deu em função da ação dos jurisconsultos romanos, sendo que muitos deles estavam comprometidos com a filosofia estoica e empenhados em modificar qualitativamente o direito positivo em Roma de modo a aproximá-lo, cada vez mais, do Direito Natural estoico.

No que tange à escravidão, a doutrina dos jurisconsultos foi revolucionária, uma vez que eles opuseram-se frontalmente ao direito positivo da época ao aceitarem a lição estoica da igualdade natural entre os homens, posição ideológica claramente divergente de Platão e Aristóteles. Apesar de terem que se subordinar às instituições estabelecidas pelo direito civil de Roma, tal fato não os impediu de criar normas protetivas destinadas aos escravos63.

Segundo Harvey [64], as condições de vida dos escravos melhoraram de maneira gradativa ao longo do Império Romano, quando lhes foi permitido casar e obter reparação em caso de tratamento brutal. Para os jurisconsultos, portanto, o escravo deveria se aproximar à categoria de pessoa (persona) ao invés do campo da coisa (res). O preceito alterum non laedere também foi sendo aplicado aos escravos com o passar do tempo devido ao constante labor da jurisprudência romana. Tal se realizou mediante quatro princípios, de clara influência estoica. Laferrière [65] os lista, sendo que esses princípios podem ser encontrados no Corpus Iuris Civilis:

1. Se a liberdade é dada tendo em vista condições alternativas, deve-se realizar a mais fácil.
2. Na dúvida, deve-se privilegiar a interpretação que realiza a liberdade.
3. Muitas coisas são constituídas contra o rigor do direito e em favor da liberdade.
4. A sentença a favor da liberdade é irretratável 

Na esteira de tais princípios, o Imperador Antonino Pio (86-161), por exemplo, vetou aos cidadãos romanos e a todos que se encontrassem no Império o uso de violência excessiva e desmotivada contra os cativos, estatuindo que aquele que matasse o seu escravo receberia a punição como se tivesse assassinado escravo alheio [66]. Já o Imperador Marco Aurélio, por meio de uma Constituição Imperial, garantiu àqueles que fossem libertados por testamento o gozo de tal privilégio ainda que o herdeiro principal não quisesse ou não pudesse aceitar a sucessão [67].

O pátrio poder também foi sendo gradualmente limitado pela jurisprudência com base nos referidos princípios, uma vez que o poder de vida e morte de que o pai gozava sobre os filhos no tempo das XII Tábuas [68] ofendia o princípio básico da dignidade da pessoa humana e a liberdade. Para os estoicos, o poder deve estar na autoridade moral do sábio, e não na força e na ameaça [69]. Uma Constituição Imperial de Alexandre Severo (209-235) retirou do pai de família o poder de vida e morte sobre os seus familiares, substituindo-o por um poder de correção. Caso fossem necessárias medidas mais rigorosas, um magistrado deveria pronunciar sua sentença tendo em vista o direito [70].

Cabe ressaltar que os quatro princípios do Corpus Iuris Civilis, elaborados a partir dos princípios de liberdade e igualdade, representaram uma progressiva equalização entre homens e mulheres. Desde tempos imemoriais, as mulheres romanas eram tuteladas pelo pai ou pelo marido, não importando a idade ou a condição social. A jurisprudência foi sendo cada vez mais contrária a esse preceito, até que o Imperador Cláudio (10 a.C.-54) estabeleceu que aos 12 anos completos a mulher romana não precisava de tutores [71]. Além disso, a Lex Iulia de Adulteriis (18 d.C.), que punia o adultério como um crime gravíssimo e que vinha sendo usada somente para proteger os interesses do cônjuge varão, começou a ser empregada para punir não somente a esposa adúltera, mas também o marido que incorresse no delito [72].

A filosofia estoica, inicialmente ensinada nas casas nobres de Roma, foi, portanto, aumentando gradativamente sua influência sobre o Direito Romano. Tal influência começa a se manifestar de maneira significativa no ius honorarium, quando os magistrados suprem as insuficiências do ius civile tendo como referência o princípio da equidade, e culmina com o Corpus Iuris Civilis, no qual se encontram trechos fundamentados no ideal de liberdade do estoicismo e que foram utilizados na aplicação do direito para garantir uma liberdade efetiva àqueles que viviam sob a jurisdição do Império Romano.

NOTAS
46 MATOS, O Pórtico e o Fórum..., cit., pp. 297-298.
47 MATOS, O Pórtico e o Fórum..., cit., pp. 296-297.
48 MATOS, O Pórtico e o Fórum..., cit., pp. 299-300.
49 MATOS, O Pórtico e o Fórum..., cit., p. 300.
50 MATOS, O Pórtico e o Fórum..., cit., p. 301.
51 CORPUS IURIS CIVILES. Editio stereotypa quinta décima. Volumen primum. Institutiones. Recognovit: Paulus Krueger. Digesta. Recognovit: Theodorus Mommsen. Retractavit: Paulus Krueger. Berolini: Weidmannos, 1928, D. 1.18.19.1, p. 141, apud MATOS, O Pórtico e o Fórum..., cit., p. 30252 CORPUS IURIS
CIVILES, Editio stereotypa quinta décima. Volumen primum..., cit., D. 1.18.19PR., p. 45, apud MATOS, O Pórtico e o Fórum..., cit., p. 302.
53 CORPUS IURIS CIVILES. Editiostereotypa quintadécima. Volumen primum..., cit., D.1.1.10pr., p. 29, apud MATOS, O Pórtico e o Fórum..., cit., p. 302.
 54 COELHO, Saulo de Oliveira Pinto. Introdução ao Direito Romano: Constituição, categorização e concreção do Direito em Roma. Belo Horizonte: Editora Atualizar, 2009, p. 72-73.
55 COELHO, Introdução ao Direito Romano..., cit, pp. 74-75.
56 SALGADO, Joaquim Carlos. A ideia de justiça no mundo contemporâneo. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, pp. 183, apud COELHO, Introdução ao Direito Romano..., cit, p. 76.
57 ARNOLD, Edward Vernon. Roman stoicism being lectures on the history of the stoic philosophy with special reference to its development within the Roman empire. Freeport: Books of Libraries, 1971, pp. 384-385, apud MATOS, O Pórtico e o Fórum..., cit., p. 310.
58 FASSÒ, Guido. Storia della filosofia del dititto. Vol. I: antichità e medievo. Roma-Bari: Roma-Bari> Gius. Laterza Figli, 2001, p.119, apud MATOS, O Pórtico e o Fórum..., cit., p. 309.
59 CORPUS IURIS CIVILES, Editio stereotypa quinta décima. Volumen primum..., cit., D. 1.1.7.1., p.29, apud MATOS, O Pórtico e o Fórum..., cit., p. 309.
60 Os questores eram autoridades públicas responsáveis, inclusive, pela administração do erário público e pelo julgamento dos crimes de perdulião e parricídio.
61 Os publicanos eram funcionários do governo romano responsáveis pela cobrança de impostos.
62 MATOS, O Pórtico e o Fórum..., cit., p. 309.
63 LAFERRIÈRE, Louis Firmin Julien. Mémoire concernant l’influence Du stoicisme sur La doctrine dês jurisconsultes romains: lu dans les séances des 2, 9 et 16 juillet 1859.Extrais du tome X des mémoires de L’Académie des Sciences Morales et Politiques. Paris: Institut Impérial de France/Typographie de Firmin Didot Frères, ils et Cie., 1860, p. 25, apud MATOS, O Pórtico e o Fórum..., cit., p. 320.
64 HARVEY, Paul. Dicionário Oxford de litaratura clássica grega e latina. TRD. Mário da gama Kury. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998,p. 209, apud MATOS, O Pórtico e o Fórum..., cit., p. 320.
65 LAFERRIÈRE, Mémoire concernant l’influence Du stoicisme sur La doctrine dês jurisconsultes romains..., cit, pp. 30-31, apud MATOS, O Pórtico e o Fórum..., cit., p. 321.
66 MATOS, O Pórtico e o Fórum..., cit., p. 322.
67 CORPUS IURIS CIVILES, Editio stereotypa quinta décima. Volumen primum..., cit., III, XI, 1-7, p. 35; CORPUS IURIS CIVILES. Editio stereotypa octava. Volumen secundum. Codex Iustinianus. Retractavit: Paulus Krueger. Berolini: Weidmannos, 1940, 7.2.6, p. 293; apud MATOS, O Pórtico e o Fórum..., cit., p.323.
68 As XII Tábuas foram o primeiro documento legal escrito do Direito Romano, o qual foi promulgado por volta de 450 a. C. 69 MATOS, O Pórtico e o Fórum..., cit., p. 324.
 70 CORPUS IURIS CIVILES. Editio stereotypa octava. Volumen secundum..., cit., 8.46.3, p.357, apud MATOS, O Pórtico e o Fórum..., cit., p. 325.
71 CORPUS IURIS CIVILES. Editio stereotypa quinta décima. Volumen primum…, cit., D.26.5.13, P. 376, apud MATOS, O Pórtico e o Fórum..., cit., p. 326.
72 FONTES IURIS ROMANIS ANTIQUI. Pars prior: leges ET negotia. Edidit Carolus Georgius Bruns. Post Curas Theodori Mommseni editionibus quintae et sextae adhibitas. Septimum edidit Otto Grandewitz. Tubingae:Libraria I. C. B. Mohirii (P.Siebeck),1909,p.112, apud MATOS, O Pórtico e o Fórum..., cit., p. 327


REFERÊNCIA

CABRAL, Luisa Rocha; FARIA, Aléxia Alvim Machado. A influência da filosofia estoica no Direito Romano por intermédio do ius honorarium e do Corpus Iuris Civilis. Disponível em: <http://www2.direito.ufmg.br/revistadocaap/index.php/revista/article/download/256/255>.

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