segunda-feira, 5 de outubro de 2015

Walter Benjamin, a temporalidade e o Direito

Enviado por: Maurício John Lima
Autoria de: Ricardo Marcelo Fonseca

1. INTRODUÇÃO

É rica e complexa a herança teórica de Walter Benjamin. Certamente poucos autores ligados à chamada "Escola de Frankfurt" tem uma singularidade tão grande ou são tão difíceis de enquadrar num molde ou num esquema teórico estanque. 

E isto se dá, em parte, pela apropriação que seus intérpretes dele fizeram, que enxergam diversos "Benjamins". Existe o Benjamin um tanto místico, principalmente a partir da leitura feita pelo seu amigo Scholem, para quem aquele autor sempre teve como pano de fundo de toda a sua obra a teologia, que seria o único meio transformador; temos o Benjamin marxista da leitura de Brecht, que pretendia "salvá-lo" do idealismo; temos o Benjamin lido por Adorno, que, por seu lado, se esforçava para "salvá-lo" do "marxismo vulgar". 

A isto se junte também a forma "sui generis" de Benjamin passar suas ideias, às vezes por meio de aforismas, às vezes em forma ensaística, às vezes meio surrealista mesmo, às vezes rigorosamente racional, que fazem com que uma apropriação "oficial" do pensamento benjaminiano seja virtualmente impossível (além de indesejável).

Somado a isto ainda existe uma enorme variedade temática em seu pensamento, que faz com que seja difícil classificá-lo quer como sociólogo da literatura, quer como filósofo. Isto podemos checar ao notarmos que existe desde o Benjamin crítico da cultura (que analisa as consequências da perda da aura nas manifestações artísticas, especialmente nas suas reflexões sobre a fotografia e o cinema); também temos o Benjamin crítico literário, em suas clássicas análises da obra de Proust, Kafka e sobretudo Baudelaire; temos ainda o Benjamin que se debruça sobre a paisagem urbana, com o olhar de "flaneur", com uma atualíssima crítica da paisagem urbana, analisando as inovações introduzidas em Paris da segunda metade do século passado por Haussmann; ou se quiser temos também o Benjamin que escreve com uma seriedade enorme a assuntos de extrema banalidade, como por exemplo a arte de esconder ovos de Páscoa. Temos finalmente - e é aqui que quero centrar a atenção - o Benjamin que reflete especificamente sobre as formas de narração.

2. A NARRAÇÃO E A EXPERIÊNCIA

Aqui se torna importante situar a discussão de Benjamin sobre a narração (seja ela a narração literária ou a narração histórica). A narração tem um papel fundamental na própria constituição do sujeito, a importância "da retomada salvadora da palavra de um passado que, sem isso, desapareceria no silêncio e no esquecimento" . Assim, no conflito existente, de um lado entre o final das formas seculares de transmissão e de comunicação e do fim da narração em particular, e de outro entre a afirmação enfática da necessidade política e ética de rememoração, é que todo o pano de fundo sobre a reflexão benjaminiana sobre a narração (e a história em particular) é formada.

A discussão sobre a narração e as mudanças na sua estrutura interna se relacionam, assim, com a discussão benjaminiana da alteração na percepção da "experiência". O conceito de "experiência" é muito importante em Benjamin. É uma noção chave e que tem uma conexão com a sua preocupação em analisar a questão da narração histórica. Paralelamente ao fato de que a obra de arte, na modernidade (que é a era de sua "reprodutibilidade técnica"), vem sofrendo uma transformação no processo de perda da aura (o que se manifesta sobretudo no cinema e na fotografia) se percebe que as formas tradicionais de "experiência" vêm sendo perdidas no mundo moderno. Aqui Benjamin distingue a "experiência" - entendida como tradição coletiva, enquanto algo que encontra raízes remotas, tais como a tradição dos provérbios, do "contar" uma história de pai para filho, da transmissão da sabedoria dos velhos para os mais novos - da simples "vivência", muito mais fugaz, desapegada e desenraizada e que progressivamente vai substituindo a primeira. Aqui se poderia fazer uma analogia com o processo que Weber chamou de "desencantamento do mundo" (sem querer identificar as ideias dos dois pensadores a respeito, bem diversas entre si), quando as esferas axiológicas como o direito, a religião e a ética se tornam autônomas, independentes entre si e mais sofisticadas. Nesta fase quando a "experiência" dá lugar à "vivência" as pessoas perdem também a sua capacidade de "contar" histórias.

Este processo - descrito por Benjamin - tem uma relação com a grande ênfase que então se dá (na época do advento das grandes cidades) com o surgimento, por exemplo, dos romances policiais. Aqui o personagem principal (o detetive), em meio a um emaranhado de acontecimentos aparentemente desconexos e no caos da realidade - que é onde se insere o crime cometido - descobre os elos aparentemente inexistentes e estabelece conexões imprevistas, dando sentido aos fatos ao desvendar o delito. Ou então - ainda dentro deste contexto de passagem da "experiência" para a "vivência" - observa-se uma nova e inusitada valorização dos interiores das casas pela arquitetura, visto que a casa torna-se o refúgio contra o mundo hostil e anônimo. É que o indivíduo burguês sofre de uma despersonalização generalizada e tenta remediar esta situação com uma apropriação pessoal de tudo o que lhe pertence na esfera privada: sua família, seus objetos pessoais, seus móveis, suas fotografias nos porta retratos, suas pinturas escolhidas e penduradas na parede.

Com o desapossamento do indivíduo da sua vida pública, que não pode mais ser apropriada por ter perdido o sentido tradicional (declínio da "experiência"), ele tenta deixar a sua marca nos objetos pessoais, como nas iniciais bordadas no lenço. A figura do colecionador também é emblemática na filosofia de Benjamin, pois é aquele que tenta estabelecer uma ordem, uma lógica aos objetos, tirando-os de sua singularidade e da desconexão em que se encontram na modernidade. "Habitar é deixar rastros”, diz Benjamin no seu "Paris, capital do século XIX" . E não é por acaso que o veludo é um dos materiais preferidos desta época (séc. XIX): os dedos do proprietário deixam nele com facilidade a sua marca.

3. NARRAÇÃO, TEMPORALIDADE E HISTÓRIA

É dentro deste processo de transformação das formas de percepção da própria realidade que Benjamin se propõe a analisar a alteração das formas da narração na modernidade, e, de modo específico para o que aqui interessa, as especificidades da narração histórica e da própria história. E neste ponto é necessário retomar um dos seus textos mais conhecidos, intitulado teses "sobre o conceito de história", ou "teses sobre filosofia da história". Este texto riquíssimo e controvertido, revelador de um Benjamin ao mesmo tempo pessimista e revolucionário, esperançoso e desesperado, utópico e melancólico, foi escrito entre agosto de 1939 e fevereiro de 1940, e constitui seu último trabalho sendo por muitos considerado como seu testamento teórico.

E neste texto é ainda possível demarcar dentro da discussão sobre a história uma outra temática que, aliás, forma o próprio cerne da análise benjaminiana sobre a redenção/resgate do passado: a visão de temporalidade. Em Benjamin, esta noção rompe com a ideia corrente sobre o tempo (e que era comum ao historicismo e ao que ele chama de concepção de progresso da social democracia alemã).

Para apreciar esta questão, é interessante relembrar um fato histórico emblemático - que é citado por Benjamin em suas teses - e que pode servir como um bom exemplo do que ele pretende com sua visão sobre a temporalidade. Trata-se de um episódio que ocorreu na revolução de julho de 1830 na França (que derrubou pela segunda vez a monarquia dos Bourbon). Com o anoitecer do primeiro dia de batalha, em vários pontos de Paris os revolucionários atiraram nos relógios das torres, de forma independente e não pré-determinada. Este fato - que para Benjamin é carregado de significados - demonstra o desejo de ruptura com um tempo mecânico, com a temporalidade dos relógios, bem como a necessidade revolucionária de inaugurar um novo calendário e uma nova forma de encarar a passagem do tempo, numa irrupção e numa quebra de uma continuidade que seja aparentemente tranquila.

Benjamin aqui está querendo se referir a uma noção de temporalidade que é comum tanto aos historicistas alemães (que adotavam do ponto de vista metodológico uma historiografia que chamaríamos hoje de "historicista" ou um tanto impropriamente de "positivista") e a ideia do progresso que era próprio das esquerdas da época (a social democracia alemã).

O tom desta crítica comum (o que se nota em várias partes das teses) se dá principalmente pelo impacto que o acordo entre Hitler e Stalin (em agosto de 1939) causou nas esquerdas. Elas (as esquerdas) viram aquelas forças que eram consideradas como as únicas que poderiam deter a expansão do nazismo e do fascismo se aliando com este inimigo, fazendo com eles um pacto de não agressão.

Esta acordo, na interpretação de Benjamin, tinha como substrato uma determinada ideia de temporalidade (e mais especificamente uma ideia de progresso) própria de uma certa esquerda. Era a ideia de que os eventuais retrocessos não passavam de percalços da classe operária, que inevitável, fatal e inexoravelmente deveria acabar por vencer, já que esta era a própria lei da história. Esta leitura do processo histórico - influenciada pelo marxismo stalinista então oficial - acabava por entender que o movimento operário tinha uma predestinação (que era independente de sua ação) para se impor na história, nos moldes da uma interpretação etapista dos modos de produção. Esta postura, em última análise, era carregada de um conformismo que, segundo Benjamin, era extremamente corruptor para o movimento dos trabalhadores. Dizia ele que "nada foi mais corruptor para a classe operária do que a ideia de que ela nadava a favor da corrente”. Era a ideia do progresso no seio do movimento operário, um progresso que na verdade era ilusório, que comprometia a sua ação política e que estava de braços dados com uma noção de temporalidade que deveria ser condenada.

Esta visão tinha o mesmo substrato daquela adotada pelo historicismo. Neste campo, Benjamin critica a ideia (que é própria de Leopold Von Ranke) de proceder a uma reconstituição do passado "como ele de fato foi", ou à idéia (própria de Fustel de Coulanges) de que o historiador, ao reconstituir uma época histórica, deve esquecer tudo o que sabe sobre fases posteriores da história (como se pode ler na tese nº 7). Ele critica os historiadores que fazem da sua matéria prima os fatos (como os historicistas o fazem de um modo geral), e traçam a trama histórica estabelecendo nexos causais necessários entre estes fatos. Para Benjamin este tipo de história, que culmina numa historiografia do tipo universal, se afasta do passado que ela pretende examinar. E isto porque é uma história que na verdade atribui um sentido "a posteriori" ao eventos e principalmente porque estabelece um encadeamento e uma determinada lógica ao eventos que lhes é externo. Os fatos se conectam de uma maneira fácil no jogo das causas e conseqüências. Em outras palavras, este tipo de história estabelece uma certa linearidade, uma harmonia e uma coerência que são estranhas à própria época que está sendo estudada.

E a linearidade é sempre pertencente a um discurso histórico posterior ao evento que ele busca relatar. A lógica que é impressa por tal historiador é estranha ao passado, já que a época pretérita, quando vivida - qualquer época que seja - se mostra complexa, dialética, rica de virtualidades, e impossível de ser apreendida por conexões simples, tal como o este discurso historicista quer fazer crer que é.

Por tais razões, este discurso linear não passa de, como nos diz Hespanha, uma postura que projeta sobre o passado as categorias mentais e sociais do presente, fazendo do devir histórico um processo (escatológico) de preparação da atualidade . Assim, cada vez mais este discurso historiográfico se divorcia do próprio passado sobre o qual ele quer se debruçar, produzindo um estudo do passado que nada mais é do que um "clone" do presente, cheio de valores políticos e ideológicos próprios do presente.

Evidentemente que isto não significa defender uma postura de neutralidade axiológica do conhecimento histórico: significa somente demonstrar o "pecado" do historiador que, por exemplo, tenta compreender a época medieval ou antiga considerando que o homem deste período fosse dotado dos mesmos princípios e os mesmos valores do homem contemporâneo. Tal distorção - própria tanto de muitas historiografias ditas "reacionárias" quanto das "revolucionárias" - se dá, por exemplo, quando se enxerga numa insurreição de escravos ocorrida há dois mil anos uma típica manifestação primitiva da revolução proletária.

E esta forma aparentemente lógica, coerente, linear e harmônica de se encarar a temporalidade - que na verdade se revela como profundamente aleatória, já que opta, por motivos as vezes mascarados, por determinadas conexões, e não por outras que poderiam ser possíveis - tem como conseqüência natural ser excludente. Na medida em que a cena histórica, para tomar uma expressão de Benjamin, é tida como UNA e como ÚNICA, na medida em que o passado é apresentado como um quadro já pronto e definitivamente pintado, são excluídas quaisquer outras perspectivas históricas pensáveis que acabaram por não se impor, de caminhos que poderiam ser traçados, e mesmo de outras conexões que poderiam ter sido feitas naquela mesma lógica do encadeamento de fatos. A temporalidade linear representa um tempo vazio e homogêneo, onde só existe lugar para a soma (encadeada) de fatos como se o tempo fosse um receptáculo com forma e tamanho bem definidos. Há uma exclusão de todas as virtualidades históricas e todas as experiências passadas que não foram registradas ou que foram frustradas, e somente há espaço, em tal historiografia, para os sucessos históricos.

Quer dizer: o efeito básico do discurso harmônico e linear é ser excludente, e ele é excludente exatamente porque é harmônico e linear. Com isto o passado real e efetivo acaba sendo praticamente todo ele encoberto e velado, todo ele ainda por vir a tona, já que o discurso historiográfico fez uma opção por uma determinada linha de explicação que excluiu toda uma infinidade de outras. No caso do "positivismo/historicismo", como se sabe, foi uma opção pelos fatos políticos, militares e diplomáticos.

E toda essa exclusão a que o discurso historiográfico procede no conhecimento histórico na verdade reflete a exclusão que existe na própria realidade histórica, que é feita de um processo contínuo de conflitos, de lutas e de exclusões.

Com isto se chega a uma conclusão fundamental: a ideia de que a historiografia fundada neste tipo de temporalidade e que tem como base esta linearidade excludente, nada mais é do que uma manifestação no âmbito da cultura e do conhecimento de um processo REAL de exclusão, o reflexo de uma realidade que acabou por se impor na base do relegar algumas perspectivas para que outras se impusessem, o reflexo de uma impostura histórica vencedora, sobre os pés da qual se encontra uma perspectiva histórica vencida: é o que Benjamin entende como história dos vencedores.

Para Benjamin o método historicista estabelece uma inequívoca empatia com o vencedor, pois para ele "os que num dado momento dominam são os herdeiros de todos os que venceram antes" e a empatia com o vencedor beneficia sempre estes dominadores. Nota-se deste modo porque para Benjamin não há um monumento de cultura que também não seja um monumento de barbárie. Para ele a cultura está impregnada desta lógica da exclusão, deste legado dos dominadores, desta imposição histórica violenta e a ruptura com este legado é uma imposição revolucionária.

Aqui se percebe, portanto, como a tarefa de fundar uma nova temporalidade, para Benjamin, tem um duplo aspecto: um teórico - na medida em que visa suplantar uma concepção de conhecimento histórico que na verdade se afasta cada vez mais da realidade passada que pretende estudar - e político - na medida em que a ruptura com a perspectiva historiográfica tradicional (que é a historia da exclusão) significa romper com a própria perspectiva dos dominadores e com a história dos vencedores.

Numa de suas teses Benjamin tenta descrever o "anjo da história" como sendo retratado por Paul Klee, e, que pelo seu caráter representativo da história como violência, como dominação e como catástrofe, merece transcrição:
"Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter este aspecto. Seu rosto está dirigido ao passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína, e as dispersa aos seus pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso." 
Como se nota, para Benjamin, como aliás ele próprio anota, trata-se de escovar a história a contrapelo.

E, afinal, qual a idéia sobre temporalidade que é colocada por Benjamin para dar lugar a esta noção de temporalidade linear, excludente e abraçada com a noção de progresso?

É uma noção que, em primeiro lugar, rompe com a imagem geométrica da linha (ascendente) e com a idéia do tempo como algo onde podem se armazenar dados, eventos e acontecimentos. O passado, para Benjamin, só pode se mostrar ao presente num momento em que for visado por ele. Explicando melhor: só num determinado momento em que o presente vivenciar o que Benjamin denomina de "instante de perigo", no momento em que houver uma exigência presente de rememoração, uma necessidade de redenção do passado, é que este passado pode se revelar. Ou seja: o passado se revela quando é invocado pelo presente. Nas palavras do próprio Benjamin "articular historicamente o passado... significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo. Cabe ao materialista histórico fixar uma imagem do passado, como ela se apresenta ... ao sujeito histórico" . O passado, assim, não pode ser considerado uma cena pronta e acabada, mas, ao contrário, ele dificilmente se deixa fixar. "... (o) passado perpassa, veloz. ... só se deixa fixar como imagem que relampeja irreversivelmente, no momento em que é reconhecido" e será irrecuperável sem que se sinta visado pelo presente. A história é composta de "um tempo saturado de 'agoras'" , e cada um destes 'agoras' deve estar apto a fazer detonar o "continuum" da história, e estar apto a irromper na temporalidade e interromper a continuidade supostamente "tranqüila" da historiografia oficial. Ao invés de apresentar uma imagem "eterna" do passado, o historiador comprometido com a história dos vencidos faz do passado uma experiência única.

Tentando resumir e simplificar esta visão benjaminiana, podemos dizer que para Benjamin (e isto está anotado na tese nº 3) nada está perdido para a história. Ele diz que somente a humanidade completamente redimida poderá apropriar-se totalmente de seu passado e somente para a humanidade redimida o passado é citável em cada um dos seus momentos. E para isto a temporalidade não pode ser considerada como algo linear, acabado, coerente, mas sim como algo que somente se apresenta quando visado pelo presente, no momento em que o presente invoca a sua redenção. Trata-se de um instante em que o tempo relampeja fugazmente (e só relampeja porque o presente pressentiu o índice do passado que o impelia à redenção e pôde despertar nele as centelhas da esperança ). É um momento preciso de conexão entre passado e presente que, segundo J.M. Gagnebin, transforma tanto passado quanto presente, já que "transforma o passado porque esse assume uma forma nova, que poderia ter desaparecido no esquecimento; transforma o presente porque este se revela como sendo a realização possível dessa promessa anterior, que poderia ter-se perdido para sempre, que ainda pode se perder se não a descobrirmos, inscritas nas linhas do atual" . É uma tarefa (também empreendida por Proust, na análise que dele faz Benjamin) que "não consiste em reencontrar o passado em si - que talvez fosse bastante insosso - mas a presença do passado no presente e o presente que já está lá, prefigurado no passado, ou seja, uma semelhança profunda, mais forte do que o tempo que passa e que se esvai sem que possamos segurá-lo."

Trata-se, enfim, de uma tarefa de envergadura ética e política: a tarefa da rememoração. E a rememoração aqui no sentido da busca de algo mais concreto do que o contingente, o superficial, do que a vivência; busca-se a própria experiência, naquela distinção, aqui já frisada, empreendida por Benjamin. Como ele aduziu no seu texto "A imagem de Proust", "um acontecimento vivido é finito, ou pelo menos encerrado na esfera do vivido, ao passo que o acontecimento lembrado é sem limites, porque é apenas uma chave para tudo o que veio antes e depois". Mas a conexão estabelecida entre passado e presente não é voltada para uma espécie de "restauração" de um passado idílico, mas sim à transformação de um presente, com uma atitude revolucionária portanto, com vistas ao futuro. É uma teoria historiográfica revolucionária, definida como retomada e rememoração salvadoras de um passado esquecido, perdido, recalcado ou negado que enfatiza a intensidade do tempo histórico com a sua virtualidade de poder fazer explodir o tempo cronológico que é próprio da perspectiva dos dominadores.

4. HISTÓRIA E DIREITO

Com a adoção de tais pressupostos, existem diversas consequências destas noções para o direito e, mais especificamente, para as formas de encarar a temporalidade do direito.

Em primeiro lugar, pode-se colocar a necessidade imperiosa de se recusar e denunciar uma forma de encarar o passado jurídico tal como existe em grande parte das "introduções históricas" dos manuais jurídicos, quando o passado do direito é colocado exatamente como uma cena tida como única e una, onde geralmente se lê, por exemplo, que o direito do trabalho teria surgido de um processo natural, pacífico e linear de evolução das relações de trabalho, de modo que a instância jurídica vai como que se acomodando "naturalmente" entre estas relações. Quase que todos os manuais trabalhistas, para citar outro exemplo, ao descreverem o movimento dos trabalhadores, ignoram o papel do anarco sindicalismo brasileiro do início do século, sempre o apresentando como uma fase "preliminar" do movimento operário, ou mesmo com um movimento de inconsequentes baderneiros, sem se aperceber da importância deste veio ideológico na constituição de direitos dos trabalhadores, que foi praticamente a única inspiração ideológica do operariado no Brasil por quase três décadas. Ou veja-se então o caso dos manuais de direito comercial, que no mais das vezes são feitos de modo a apresentar a história das relações de comércio hoje existentes como o coroamento de toda uma formação econômica (também "harmoniosa e pacífica"), como que fingindo inexistir neste campo toda uma realidade conflitiva e violenta entre mercados, grupos e pessoas, e ignorando que na verdade o processo histórico se faz com lutas, avanços e recuos, no bojo de uma enorme complexidade histórica.

Nestes casos a "trama histórica" é tecida de modo a resultar numa historiografia harmônica, coerente, lógica e concatenada, ignorando a verdadeira complexidade com que os fenômenos vão se apresentando no tempo, num campo onde na verdade o único instante de efetiva harmonia está na forma como esta própria historiografia descreve todos estes processos.

E isto faz com que o direito atual seja visto simplesmente como um resultado natural, lógico e inevitável do processo histórico, quando na verdade toda uma série de outras virtualidades históricas derrotadas ou não eleitas pela historiografia oficial estão latentes na nossa realidade. Quer dizer: a história do direito (que seja evidentemente orientada metodologicamente por esta noção de temporalidade) acaba cumprindo a triste tarefa de justificar e legitimar o direito atual.

Em segundo lugar deve-se desconfiar de qualquer explicação histórica do direito que apresente o passado jurídico ocidental que uma tranquila justaposição (ou soma) das tradições do direito romano, do direito canônico e do direito germânico. Este tipo de interpretação está de braços dados com a linearidade antes referida, ignorando a óbvia complexidade em que o direito hoje vigente acabou por se impor historicamente.

Disso que se disse até aqui se extrai uma terceira conclusão importante: já que a história do direito não é (ou pelo menos não pode ser) um instrumental legitimador e justificador do direito vigente, ela tampouco pode ser considerada como um método que se presta unicamente à tarefa auxiliar de encontrar o "sentido das normas", por meio de uma "interpretação histórica”. E isto, dentre outras razões, porque a história do direito não é só a história das leis: há, de fato, um nível "inferior" ao nível legislativo em que o direito regula as situações concretas e se transforma em "vida" (como nas sentenças, na atividade dos advogados, nas decisões dos órgãos administrativos, na doutrina, etc.). Além disto, existe toda uma gama de recursos regulativos "pluralistas" e não oficiais totalmente estranhos à lei. Por outro lado, a lei mesma não pode ser tomada como objeto privilegiado de análise histórica em vista de um fato singelo: no mais das vezes (e isto fica mais real quanto mais se distancie da modernidade) existe uma distância sensível entre o direito legislado e o direito praticado.

Uma quarta consequência importante para o direito a partir deste novo enfoque historiográfico já acenada acima: estar atento às infindáveis formas regulativas que fazem parte do passado jurídico, onde a lei se impôs como meio privilegiado muito recentemente. Isto é: impõe-se o reconhecimento do profundo pluralismo jurídico imperante em todo o passado jurídico, num trabalho de relativização do monismo jurídico do ponto de vista histórico e sociológico. A história, aqui, no dizer de Hespanha, cumpre a função de produzir um conhecimento crítico e distanciado dos mecanismos legislativos, reduzindo o efeito ideológico que consiste em crer tanto na sua predominância quanto na sua inevitabilidade, dando subsídios para pensar o direito em sua dinâmica histórica real . Isto implica em considerá-lo como fora desta "linha" coerente e harmônica, que resulta inevitavelmente no direito presente e na falsa ideia da legislação como única via histórica possível.

Não se está querendo dizer que se tenha que se fazer um resgate para o presente de formas arcaicas de regulamentação jurídica. Como diz Hespanha, é uma idealização supor que um direito primitivo seria a sede do igualitarismo, da harmonia e da justiça. Pelo contrário, os processos de constrangimento comunitário são muitas vezes ordens opressivas e sufocantes, que reproduzem muitas vezes os desequilíbrios locais de poder. Mas a relativização do direito legal serve como um instrumental de análise importante para criticar a ordem jurídica vigente (monista) de modo a capacitar a diagnosticar sua crise, através de uma proposta de "redimensionamento da legalidade", colocando em seus devidos termos a evidência de que a lei é apenas uma das formas de controle social.

É, aliás, o que faz este mesmo historiador do direito português ao perceber que o direito atual, calcado neste paradigma monista e fundamentado num direito que é basicamente estatal e crente num padrão legalista de regulação, está em crise, e que aquela sacralizada legalidade passa a sofrer alterações funcionais e estruturais significativas.

5. CONCLUSÃO

A temporalidade benjaminiana, portanto, rompe com a perspectiva temporal e historiográfica que compactua com o discurso dos vencedores. Busca uma noção de rememoração radical de um passado - através da implosão da temporalidade tranquila da história oficial - para que as vozes dos vencidos sejam reapropriadas.

As consequências para a compreensão do direito não são negligenciáveis, especialmente considerando que para o jurista a história quase sempre cumpriu o papel pouco digno de legitimador e justificador da normatividade presente. A ruptura com a linearidade da historiografia tradicional do direito significa reavivar o próprio discurso crítico sobre a formação da instância jurídica, além de implicar numa importante relativização de dogmas até hoje assentes entre os operadores do direito (tal como a inevitabilidade da lei, ou a inevitabilidade de sua forma e seu modo de aplicação, etc.).

A época presente demonstra a existência de uma série de "momentos de perigo". A crise de legitimação do Estado (agravada pelo fato de que o próprio Estado, na sua atuação administrativa, se torna um dos maiores responsável pelo aviltamento do sistema jurídico), bem como sua crescente incapacidade de dar conta do ponto de vista normativo a toda a gama emergente de relações sociais e econômicas novas, bota a sua própria essência em cheque. O direito, na tradição do nosso modelo monista, vem a reboque. Um certo discurso que se apressa em extrair conclusões convenientes de todo este momento de transformação global aponta para a destruição do Estado e do Direito. É justamente nestes "momentos de perigo" que o esforço de reflexão deve se socorrer da explicação histórica para buscar a solução de seus impasses. É neste momento que um pensamento radical, crítico e transformador deve impor o seu espaço.

Lembrando pela última vez as palavras de Benjamin, estejamos atentos que precisamente neste momento - quando se deve estar atento às imagens do passado, quando o passado dirige um apelo à nossa frágil força messiânica - é que a nossa geração e as precedentes devem marcar o seu encontro. E este apelo não pode ser rejeitado impunemente.


REFERÊNCIA

FONSECA, Ricardo Marcelo. Walter Benjamin, a temporalidade e o Direito. Disponível em: <http://www.historiadodireito.com.br/mostra_textos.php?opcao=mostra_texto&id_textos=8>.

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