sexta-feira, 2 de outubro de 2015

A importância da phronesis aristotélica para a hermenêutica jurídica

Enviado por: Rafael Alves Padilha
Autoria de: Hans-Georg Gadamer

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É verdade que o justo parece estar determinado num sentido absoluto, pois está formulado nas leis e contido nas regras gerais de comportamento da ética, que, apesar de não estarem codificadas, têm uma determinação precisa e uma vinculação universal. A própria administração da justiça é uma tarefa própria que requer saber e poder. Mas então ela não é uma techne? Não consiste, também ela, na aplicação das leis e das regras a um caso concreto? Não falamos da “arte” do juiz? Por que será que o que Aristóteles designa como a forma jurídica da phronesis (dikastiké fronésis) não é uma techne?

A reflexão nos ensina que a aplicação das leis contém uma problemática jurídica peculiar. Nisso, a situação do artesão é muito diferente. Este, que possui o projeto da coisa e as regras de sua execução, e a esta se aplica, pode ver-se obrigado também a adaptar a circunstâncias e dados concretos, isto é, renunciar a executar seu plano exatamente como estava concebido originalmente. Mas, essa renúncia não significa, de modo algum, que com isso se complete o seu saber daquilo que quer. Ele simplesmente faz reduções durante a execução. Isso é uma real aplicação de seu saber, vinculada a uma imperfeição dolorosa.

Ao contrário, todo aquele que “aplica” o direito se encontra em uma posição bem diferente. É verdade que na situação concreta ele se vê obrigado a atenuar o rigor da lei. Mas se o faz, não é porque não seja possível fazer melhor, mas porque senão estaria cometendo injustiça. Atenuando a lei não faz reduções à justiça, mas encontra um direito melhor. Em sua análise da epieikeia, a “equidade”, Aristóteles formula isso com a mais precisa das expressões: epieikeia é a correção da lei. Aristóteles mostra que toda lei é geral e não pode conter em si a realidade prática em toda a sua concreção, na medida em que se encontra numa tensão necessária com relação ao concreto da ação. [...] Fica claro que o problema da hermenêutica jurídica encontra aqui seu verdadeiro lugar. A lei sempre é deficiente, não em si mesma, mas porque, frente ao ordenamento a que se destinam as leis, a realidade humana é sempre deficiente e não permite uma aplicação simples das mesmas.”

Excerto de Verdade e Método, de Hans-Georg Gadamer, em que o filósofo alemão retoma a problemática da aplicação da lei em Aristóteles, no contexto da especificidade da sabedoria prática (phronesis). Em certo sentido, a hermenêutica jurídica encontra seu centro na tensão entre o universal e o particular, apresentados respectivamente pela lei e pelo caso singular. O nó, como belamente nos faz recordar Gadamer, só é desfeito por Aristóteles com a entrada em cena do conceito de equidade, concebido como uma espécie de correção da lei.


REFERÊNCIA

GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método. 6ª Edição. Petrópolis, RJ: Editora Universitária São Francisco, 1997 (pp. 418-19).

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